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Maria de Jesus Beato: do fundo do coração

Há 44 anos, em 24 de abril, o medo quase lhe impedia as batidas. Era o medo de perder o marido. De perder a liberdade. De perder quase tudo. Agora, ouvimo-la sobre as vésperas da chegada da Democracia, vividas com a convicção de mulher de um dos Homens de abril.

Foto: Pedro Ferreira
24 de abril de 2018 às 10:00 Maria Flor Pedroso

Teve pena de não viver o 25 de Abril. A alegria. A festa. Viu outros a fazerem-na, mas estava petrificada. De medo. O medo com que tinha vivido toda a vida. "Sabe, nós nem em casa falávamos de certas coisas… Sabíamos do que estávamos a falar, mas não as dizíamos porque fomos educados assim, para não as dizer." Maria de Jesus Beato, 67 anos hoje, 23 naquele abril, é regente agrícola de formação. Olhos claros vivos, de palavra rápida, solta e direta. Mas há 44 anos a história era outra.

Casada há um ano, juntou-se ao marido, em Moçambique. "Uma experiência maravilhosa." Voltaram no outono de 1973. A ideia do marido era acabar o curso de Direito, que ficou em suspenso por causa da comissão militar, em Moçambique, e voltar para Setúbal, onde viveu "porque tem o mar e é mais perto de Grândola, onde estavam os meus pais". Pois não foi nada disso que aconteceu à jovem Maria de Jesus. O marido, Carlos Beato, teve de se apresentar na Escola Prática de Infantaria (EPC) de Santarém. No dia 5 de outubro ? como poderia esquecer esta data? ?, Salgueiro Maia tem uma conversa com Beato. "Rapaz Beato (era assim que ele chamava ao meu marido), vai aí haver uma ‘coisa’ porque isto não pode continuar como está e, portanto, não te podes ir embora." Relembra que foi uma conversa curta, muito curta, e sem pormenores. Coisa rápida na parada do Quartel. "Tu não podes passar à ‘peluda’, que era assim que se dizia quando se deixava a tropa, disse-lhe o Salgueiro Maia." E assim foi porque assim tinha de ser. Ao Salgueiro Maia não se dizia que não porque era o Salgueiro Maia. Maria de Jesus conta que, à medida que os dias iam correndo, as notícias eram escassas, mas, a certa altura, o Maia ia dizendo: "Vai-te preparando que as coisas estão a correr bem. Isto está quase." Beato não participava nas reuniões e não sabia muito mais. Era preciso manter, a todo o custo, o segredo da operação, "para não acontecer outro 16 de março", o golpe falhado das Caldas da Rainha. Na rua onde moravam, em Santarém, começou a haver outro movimento. Maria de Jesus não tem dúvidas. "Eu digo a PIDE, não digo a polícia política, ou melhor, um PIDE começou a rondar a nossa casa e as casas de outros." Uma situação que conhecia bem do tempo em que morava em Grândola, onde a perseguição, sobretudo aos trabalhadores da cortiça, era constante. "Ainda me lembro da minha mãe dizer que o Farrusca, um vizinho nosso e amigo, tinha sido levado na ‘ramona’, como se chamava às carrinhas da PIDE." Além disso, o pai até assinava o Jornal de Fátima para disfarçar não a atividade política que não tinha. "Mas gostava de política e ouvia a Rádio Moscovo, na sala."

Beato não sabia muito mais, até ao dia em que soube. "O meu 25 de Abril começou no dia 24 porque o meu marido chega a casa e diz: ‘É hoje, é hoje!’... A dizer que era a coisa do Salgueiro Maia… ‘É hoje que vou para Lisboa com ele! E tu ficas em casa e não podes dizer nada a ninguém… Enquanto eu não chegar, não podes sair de casa.’" Ainda foram a casa dos sogros para se despedir sem o dizer. "Não sabíamos o que podia acontecer. Ele podia não voltar, ser preso, podia morrer." Chegados a Santarém, o marido foi para o Quartel e a mulher para casa. Depois do jantar, Carlos Beato volta a casa para ouvir com a mulher, no velho rádio Grundig que trouxeram de Moçambique, a primeira senha, o E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho. "Ainda me arrepio a falar disto." O marido voltou para o Quartel. Maria de Jesus foi para a cama agarrada ao rádio para ouvir a segunda senha, a Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso, que tinha sido seu professor de História, no liceu de Setúbal, e à cadela que tinha, na altura. Sozinha em casa. Não, o marido não lhe falou nem de revolução, nem de golpe de Estado. "Não se usavam essas palavras", diz. Sabia que quando ouvisse a Grândola era sinal de que eles saíam para Lisboa. Aquela hora e meia entre o E Depois do Adeus e a Grândola, Vila Morena pareceu-lhe uma eternidade. "E eu até estava a ficar contente porque, assim, eles não saíam, não corriam riscos." Era o medo, um medo que nunca a abandonou. Lá veio a Grândola. Mas, pelas duas horas da manhã, tocam à porta. "É a PIDE! É a PIDE que me vem buscar! Já os levaram a eles e, agora, vão levar as mulheres." O toque da campainha era insistente e já o era no patamar da escada. "Quem é que dizia que eu era capaz de abrir a porta… Eu estava petrificada e mais fiquei quando ouvi um pontapé." Olhou pelo óculo e viu três homens. Era mesmo a PIDE. Tinha de abrir. E vê o marido e dois camaradas que conhecia bem. O medo. O medo era tanto que nem reconheceu o marido. "Veja a qualidade, o coração do Salgueiro Maia, que se virou para o meu marido e lhe pergunta: ‘Olha lá, rapaz Beato, tu não te casaste há pouco tempo? A tua mulher está com quem?’ Então o meu marido veio buscar-me, a mando do Salgueiro Maia. Até nisto ele pensou, a minutos de partir para Lisboa. Veja lá se ele não era uma pessoa extraordinária." Fez agora, a 4 de abril, 26 anos que morreu. Maria de Jesus ficou em casa da mulher do tenente Sardinha, que dava para as traseiras do Quartel, três dias e três noites. Não se lembra de dormir ou de comer. Também lá tinham um PIDE, sempre debaixo de uma árvore. Puseram-se em cima de um banco de cozinha e conseguiam ver e ouvir a parada da Escola Prática de Cavalaria. Passavam as horas coladas ao rádio, pouco falavam, choraram, choraram muito, percebiam alguma coisa do que se passava e mais medo tinham, porque não sabiam onde estavam os seus amores, nem se estavam. Só sabiam que tinham ido para Lisboa. Só no dia 26 é que teve a certeza de que o marido estava vivo, quando através do Palma, um amigo e camarada de Carlos Beato, lhe faz chegar um bilhete. Em metade de uma folha A4, rasgada, onde lhe escreve Lisboa, Terra da Fraternidade. "Como é que ele escreve isto logo no dia 26 de abril?", pergunta-se, sem esperar resposta, e lhe diz que se o quiser ver que leia o Diário de Notícias porque ele está ao lado do capitão Maia. Tremem as mãos a Maria de Jesus quando pega no bilhete. Diz que a pele lhe dói ao ler este papel tão envelhecido e com a tinta já sumida. "Não sei quando regressarei, mas não há-de ser nada", escreve Beato para a mulher. "O meu 25 de Abril começa a 24, à noite, e acaba a 27 quando ele chega a Santarém." E de novo o medo. Confessa que nem viveu bem esse dia porque o medo continuava. "Claro que eu estava radiante porque estava ali o meu amor." Mas Maria de Jesus lamenta-se por não ter conseguido viver a festa, aquela euforia, com os cartazes de ‘Viva a Liberdade’. Toda a cidade e arredores estava no quartel. "E eu olhava para aquilo tudo com medo, porque o meu medo tinha sido tanto que eu não conseguia deitar nada cá para fora. Eu não vivi o 25 de Abril! Aquilo que, inconscientemente, tanto esperava e queria, o medo não me deixou viver." 

Maria de Jesus Beato
Foto: Pedro Ferreira
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