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Diz que a música é o seu psicólogo. É a ela que recorre para pensar na vida e resolver-se a si própria. Parece resultar. Espontânea e entusiasmada, Ana Bacalhau distanciou-se da imagem da Deolinda e hoje é cada vez mais ela. E nem sequer tem medo de dizer que é feliz.
15 de março de 2016 às 07:00 Máxima
Estudou línguas, deu explicações, foi secretária, trabalhou como arquivista. Mesmo quando a realidade não encaixava nos planos, Ana Bacalhau fazia o que podia para ser uma pessoa feliz, e era sempre a música que acabava por funcionar como a mola que fazia disparar os seus níveis de satisfação e de felicidade. Um dia a música sobrepôs-se ao resto e ela subiu ao palco, saias garridas e rodadas, mão na anca, atitude desempoeirada, às vezes um nadinha bairrista. Ao princípio, foram muitos os que a confundiram com a própria Deolinda (o projeto musical a que dá voz), tão coladas que estavam uma à outra. Mas com o tempo, Ana voou. E hoje é impossível não reparar na personalidade própria. "Foi com a música que eu resolvi muitos dos meus problemas, é na música que eu me resolvo. É o meu psicólogo", dizia-nos já em jeito de confissão e final de conversa, enquanto falava das suas referências de sempre (como Janis Joplin) e das bandas que anda a ouvir (They’re heading west). Honestidade. É a esta palavra que acaba por recorrer vezes sem fim, seja para falar dela própria, ou da música da Deolinda, que apresenta agora Outras Histórias, o quarto álbum da banda. "Não podemos fazer música e álbuns a tentar agradar às pessoas, não estaríamos a ser honestos e, portanto, o trabalho não seria honesto. Queremos fazer a música que nos agrada, que nos dá pica. E esperar que isso passe para as pessoas." A digressão já está na estrada.
Provavelmente já estará cansada de responder a esta pergunta, mas é tentador começar por aí. Há um antes e depois na Deolinda depois da música Que Parva Que Sou (tema tocado durante um concerto no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e que, rapidamente, foi apelidado de hino de uma geração)?
Na altura, foi um embate muito grande, apesar de já termos alguns anos de exposição pública. Aquela coisa maravilhosa que aconteceu em palco entre nós e o público e depois o que as pessoas fizeram com a canção foi maravilhoso. O que nos desgastou foi todo o alarido que se criou à volta da canção. Foi um pouco violento para nós porque lemos coisas que nos desagradaram, achámos que foram feitas análises que não estavam corretas, vimos o nosso trabalho menosprezado, ou seja, apercebemo-nos de uma série de jogadas extramusicais, políticas, económicas…
"Aquela pica que tínhamos no início ainda se mantém. Foi por isso que nos tornámos músicos. Essa alegria imensa, a importância que a música teve no nosso percurso, não
só como algo artístico mas como algo emocional..."
Sentiram-se instrumentalizados…
Sim, de certa forma, sim. E claro que isso nos abalou. Mas acho que tivemos a calma e a ponderação suficientes para nos blindarmos e protegermos. Deixamos que este turbilhão de vozes a dizer milhentas coisas diferentes passasse. Tomámos a decisão certa de ter um bocadinho de calma, respirámos e pensámos no que somos. O mais importante para nós é não desvirtuar a música, não desvirtuar o projeto artístico que é a Deolinda. Aguentámos estoicamente e acho que saímos desse período com uma perceção melhor e maior de quem somos como banda, como pessoas até.
Esse momento redefiniu a Deolinda?
Não, acho que não. Acho é que nos pode ter redefinido aos olhos de quem não conhecia a Deolinda, mas aos nossos olhos não, até porque sempre tivemos essa preocupação em contar e cantar…
Fazer uma análise social?
Sim… aconteceu isso nessa altura. Mas aquilo que queremos, acima de tudo, é fazer música e falar de tudo. Nenhum artista gosta que o metam numa caixa estanque e foi isso que tentámos fazer neste álbum: libertarmo-nos de qualquer ideia feita em relação à Deolinda e sentirmo-nos completamente livres para experimentar, nunca desvirtuando aquilo que é a nossa proposta artística, que são as histórias. É esse o nosso ADN, as histórias, a forma como elas são contadas, o sorriso nos lábios. Mas também entramos por territórios onde ainda não tínhamos entrado. Queremos ter essa liberdade e é para essa viagem que queremos trazer o público, se ele tiver a amabilidade de vir.
Isso nota-se também em si, essa evolução. Houve espaço para crescer, para deixar que tudo ficasse mais fluido…
É tudo mais natural, sim. Gostamos muito de estar em palco (aliás, a Deolinda é um projeto criado a pensar no palco), fomos crescendo como pessoas, viajámos por todo o mundo. Sentimo-nos mais à vontade. No início, havia uma urgência de apresentar o universo e apostar na imagem Deolinda, que se refletia na forma como nós nos vestíamos, como eu apresentava as histórias antes de as cantar... Uma coerência estética que desse forma e cor a quem não conhecesse a Deolinda. Com o passar dos álbuns isso foi deixando de ser preciso. Felizmente muitas pessoas conhecem a Deolinda e sabem o que é… Por isso, fomos descartando essa personagem e assumindo cada vez mais a nossa pele.
Foi confortável deixar a Deolinda e dar espaço à Ana?
Aconteceu naturalmente, da mesma forma que foi natural, do segundo para o terceiro disco, sentirmos que era importante não nos estereotiparmos, não nos cartoonizarmos.
Lá está, a liberdade artística que diz ser tão importante.
Exatamente! Abri um pouquinho o universo da Deolinda. Por detrás da Deolinda há a Ana, o Pedro (da Silva Martins), o Luís (José Martins), o José Pedro (Leitão) e, portanto, era preciso mostrar estas cores diferentes da Deolinda. Agora é isso que nos interessa mostrar nestas Outras Histórias, não só a música mas também a imagem, as fotografias, as roupas. A Deolinda é mesmo uma mistura dos quatro, e estas quatro personalidades conjugam-se entre si para formar aquela unidade.
Então e que Outras Histórias são estas que apresentam agora?
São novamente histórias do quotidiano, com que qualquer um se pode identificar. Há caminhos que ainda não tínhamos seguido ou que só tínhamos aflorado. Por exemplo em A velha e o DJ, com o Riot a fazer o beat. À partida seria uma parceria improvável e que não iria resultar, só que nós sempre fizemos o seguinte: ao abordar as canções, deixamos que sejam elas a dizer o querem. Acho que quando se faz uma coisa de forma séria, livre, descomplexada, de coração aberto e de forma inteligente, tudo pode funcionar. Desde que tenha essa abordagem honesta. Foi isso que aconteceu. Tivemos muita sorte com as parcerias, foi uma coisa orgânica, natural, bonita, de amizade.
Continua a haver muito prazer nesse processo criativo?
"Por um lado, sinto-me
muito feliz, faço aquilo
que amo e isso é um privilégio num mundo
como o de hoje. Mas
também houve coisas
que não foram positivas
e me marcaram, mas
que de certa forma são
como matéria-prima
para aquilo que faço,
para aquilo que escrevo."
muito feliz, faço aquilo
que amo e isso é um privilégio num mundo
como o de hoje. Mas
também houve coisas
que não foram positivas
e me marcaram, mas
que de certa forma são
como matéria-prima
para aquilo que faço,
Aquela pica que tínhamos no início ainda se mantém. Foi por isso que nos tornamos músicos. Essa alegria imensa, a importância que a música teve no nosso percurso, não só como algo artístico mas como algo emocional... Tudo isso se mantém, cada vez mais até, pelo menos falando por mim. Sinto que estou melhor naquilo que faço. A cantora que sou em 2016 é melhor do que a de 2008. Tenho mais ferramentas, mais recursos, mas no entanto não sou uma cantora fria...
Cantar com o coração, é isso?
Saber cantar com o coração e aliar a isso a inteligência de perceber que recursos interpretativos e vocais posso usar. Saber servir bem as canções. E eu acho que estou, cada vez mais, a achar as melhores soluções para as canções… Sinto-me muito feliz porque estou a manter esse equilíbrio, sinto-me cada vez mais solta nesse sentido em que tenho a técnica, mas estou mais madura, não preciso de mostrar em todas as canções que consigo ir daqui acoli, consigo dar-lhes o meu melhor e ao mesmo tempo fazer com que elas me deem a alegria que me dão, primeiro em estúdio e depois ao vivo.
O palco sempre foi um lugar natural?
Sim, sempre natural, mas sempre com uns nervos imensos, hoje em dia mais, até. No início, não gostava nada de estar em estúdio, era-me penoso. O mais importante em estúdio é captar-se a melhor versão de uma canção, uma versão que possa ser ouvida daqui a 30 anos e soe a fresco e a interessante. E às vezes, em estúdio, o menos é mais enquanto ao vivo se calhar o mais é o acertado. Portanto, com a experiência vão-se ganhando ferramentas e a experiência do estúdio torna-se mais gratificante para mim e acho que para os outros também.
A ideia de família, que atravessa a banda, por um lado traz segurança mas, por outro, pode implicar ficar preso numa zona de conforto...
Quando estamos a trabalhar, somos músicos, quando não estamos, somos família. É muito fácil fazer essa divisão. Mas tenho percebido ao longo dos tempos que uma banda é como um casamento. É um compromisso sério de longa duração entre diversas pessoas. E há uma ligação muito forte que se estabelece, quase familiar. Em nós isso já existia [Ana é casada com José Pedro e prima dos outros dois músicos da banda] e nunca deixará de existir.
Imagina a Deolinda a cantar para sempre?
Gostava. Imagino-me a fazer Deolinda até ser velhinha e acho que faz todo o sentido, na verdade até estou curiosa para saber o que é que ela vai cantar daqui a 30 anos, mas sei que terá sempre alguma coisa a dizer. E será pertinente com certeza, muito por mérito do olhar do Pedro, que escreve as canções.
Isso não inviabiliza outros projetos? Recentemente subiu ao palco com um projeto só seu, Quinze, em que interpretava algumas das suas músicas favoritas.
E foi muito importante, até para a minha evolução como cantora. Permitiu-me relembrar registos que já não cantava há algum tempo e que me ajudaram na abordagem das novas canções. Sou jazzista no sentido em que não só estou sempre a inventar maneiras diferentes de cantar mas também porque acho que a riqueza de um músico está em poder partilhar a música com um maior número de músicos. Portanto, esse tipo de projetos e colaborações é importante porque enriquece o trabalho na Deolinda.
Também escreve crónicas para a Notícias Magazine. Há aí um lado de opinion maker?
Lembro-me de escrever histórias desde pequenina. Quando surgiu essa oportunidade, fiquei muito feliz e assustada. Estudei Literatura ? Português e Inglês ?, mas estava um bocadinho enferrujada. Foi muito importante recomeçar, ganhar músculo de escrita, ajuda-me até a interpretar. E é bom perceber que as pessoas gostam de ler o que eu escrevo. Espero conseguir passar para o lado de lá, ser ouvida, deixando espaço para que as pessoas retirem aquilo que lhes possa interessar.
Quais diria que são os fatores essenciaisque a definem como pessoa?A educação que teve, os músicos que ouviu, os sítios onde foi?
É isso tudo. Sempre tive uma enorme curiosidade em relação à vida e ao mundo. Sempre gostei de pensar.
A vida tem sido meiga consigo?
Não sei, não sei mesmo... Por um lado, sinto-me muito feliz, faço aquilo que amo e isso é um privilégio num mundo como o de hoje. Mas também houve coisas que não foram positivas e me marcaram, mas que de certa forma são como matéria-prima para aquilo que faço, para aquilo que escrevo. Hoje fala-se muito de bullying. Em miúda fui vítima desse gozo de colegas e isso pesa-me ainda hoje. É óbvio que eu nunca diria: "Ah, ainda bem que me aconteceu." Preferia que não me tivesse acontecido, mas se calhar foi importante porque me permitiu ser quem sou. Portanto, não se trata de congratular-me pelo que aconteceu de mal mas, de certa forma, ter ferramentas e resiliência para transformar esses momentos em algo positivo. Mas podia ter corrido mal. Tudo depende da forma como digerimos essas coisas, não é?
Que medos sobrevivem?
Tenho alguns, mas são medos que me fazem avançar. Geralmente essa coisa da sensação desconfortável é algo que procuro na minha profissão. Acho que nós, todos os que querem criar um objeto artístico, têm de se colocar em posição de desconforto. Porque é daí que nasce algo de interessante, de nos lançarmos sem rede e de mostrarmos uma certa…
… vulnerabilidade?
Sim, darmos de coração aberto. Prefiro ir de coração aberto e, portanto, há sempre um medo, mas gosto de sentir esse desconforto para poder avançar e criar coisas novas. O meu maior medo é começar a copiar-me, a estereotipar-me cedo demais. Ainda é cedo para ser uma cópia de mim própria ou algo previsível.
1 de 2 /Vestido em seda, Chic by Choice. Anel em metal, Lafayette Closet.