Afonso Reis Cabral: “Se é bem feita, a literatura é real”
Depois de O Meu Irmão, romance de estreia distinguido com o Prémio Leya, Afonso Reis Cabral conquista o Prémio Literário José Saramago com Pão de Açúcar, obra baseada na história de Gisberta, a transexual assassinada no Porto, em 2006. Dois livros, dois prémios e todo um talento que se confirma.

Logo que chega, à hora certa combinada, começo por lhe dizer como admiro a sua precocidade. Acabava eu de ler o livro, madrugada adiante, naquela vigília, escrevi: "A ler depressa e devagar, que beleza há na nossa língua escrita. Desigual, livro doce e terno e violento, as palavras são leves e pesadas, puro na inocência terrível nas zonas sombrias da natureza humana." Os cenários da cidade, a emoção sensual do desejo nos primeiros anos, a linguagem dos garotos de rua, a instituição onde vivem, a malandragem, a beleza. Sublinhei, transcrevo: "É de espantar que haja tanta gente por descobrir e a vida não brilhe sempre." "É que a calma daquilo não condizia com a expectativa e com o desejo que nessa idade, não interessa o que dizem, salta como pássaro em primeiro voo." "O ruído da cidade, os carros a apitar, os carros a travar com estampido hidráulico, as gruas a girar, mas também o vento no cimento, os estorninhos em voo rumo ao Douro."
Depois de estudos de Literatura na Universidade Nova, aos 29 anos, por unanimidade dos jurados que o distinguiram entre múltiplos candidatos, recebeu o Prémio Saramago pela qualidade literária de Pão de Açúcar. Em 2014, o seu nome foi anunciado como o de um muito especial escritor entre nós. Depois do Prémio Leya por O Meu Irmão, o seu livro de estreia, Afonso Reis Cabral surpreendeu, abalou, tornou-se acontecimento por este segundo romance. A arte ou o talento de transformar a realidade em ficção ou vice-versa aconteceu a partir da tortura e morte de Gisberta, a transexual brasileira assassinada no Porto por um grupo de adolescentes. Em 2006, o caso chocou, em absoluto, a opinião pública. Afonso andou pela cidade, percebeu as pessoas, sentiu a crueza da realidade, o contraste das diferenças. "Interiorizar a realidade e transformá-la", assim respondeu a alguém sobre a razão de ser. Ou, em outro momento, "não confundo os cenários do livro com a minha vida".

Cresceu numa casa com livros?
Os livros eram constantes. Os meus pais são grandes leitores e há muitos livros em casa. Eu sempre cresci no meio dos livros na sala, nos corredores, nos quartos. A mãe lia-me na cama um livro chamado 365 Histórias de Encantar que adaptava várias histórias infantis. Uma dessas histórias era O Príncipe Feliz. E eu queria ser como ele.
O Porto?

Onde está a família, mas tenho mais pertença a Lisboa, cidade que adotei. Estas dicotomias são estúpidas: comparar Porto e Lisboa é como escolher Saramago ou Lobo Antunes, Camilo ou Eça. O mundo é tão diverso e limitá-lo dessa maneira é estúpido. Eu não abandonei o Porto. Queria fazer o curso em Lisboa. Saí do Porto aos 18 anos e vim para casa da minha avó materna fazer a licenciatura na [Universidade] Nova.
Tem falado de professoras que o formaram e que foram importantes na sua vida. Quer agora lembrá-las?
Maria Helena Padrão foi minha professora dos 15 aos 18 anos, passou todo o Secundário a dar-me segurança e fez o prefácio do meu primeiro livro, Condensação, um livro de poemas que me ajudou a preparar [e que] publiquei em 2005, aos 15 anos. Era diretora do Clube Literário do Porto, onde foi o lançamento do livro. Alexandra Azevedo foi minha professora de latim e de grego no liceu. Éramos uma espécie em extinção. Na nossa turma havia um encantamento, todos estávamos no mesmo barco. No 12.º ano fez-me participar no concurso europeu e fui a Atenas. Era o único português e ganhei um prémio. Paula Cristina Costa, na [Universidade] Nova, ficámos amigos pela forma como ensina a Literatura Portuguesa da segunda metade do século XX. Nas aulas, ela falava de um poeta ou de um autor, eu apontava o nome numa folha e ia ler.

Quase 20 anos desde o princípio. Imagino um menino e um caderno na mão…
Com nove anos eu já queria ser escritor. Fazia poesia, queria ir ao cerne das coisas. A poesia já era a busca da escrita pela simplicidade. Era o oposto do suplício ou da angústia da infância. Eu tinha uma infância feliz. A poesia era quase um teatro.
Mais do que poeta, é autor de prosa de ficção, estudioso de Língua Portuguesa, editor, cuidador de texto. E começou a ser escritor. Como foi?

No 6.º ano do liceu, tinha 11 ou 12 anos, fiz um trabalho para a aula de Português. Chama-se Terras de Batalha. Devíamos escrever sobre um tema histórico e eu escolhi a história da Batalha do Buçaco. Criei a figura de um homem chamado Joaquim, um camponês que juntou homens com enxadas e pedras para expulsarem os franceses.
Seguiram-se os anos de teses académicas, de estudo, de trabalhos de edição. Um percurso de coerência e de força de vontade. Depois dos poemas de infância, do livro de estreia na adolescência, aconteceu o Prémio Leya pelo livro O Meu Irmão. Foi o sucesso, o reconhecimento. O que é este livro na sua história de autor?
O Meu Irmão é a procura do outro. É uma experiência de entendimento do outro. O meu irmão tem Trissomia 21, Síndrome de Down. Não escrevi uma autobiografia de verdade.
E agora, Leva-me Contigo é uma escrita diferente. Que sentido tem, que significa, que testemunho é dado?
Foi uma caminhada de 738,5 quilómetros pela Estrada Nacional 2, em abril e maio de 2018. Pode não significar nada… É fruto de uma aventura. Fui de Chaves a Faro, a pé, andava em média 30 a 45 quilómetros por dia, de mochila às costas. Eu seguia pela estrada através do alcatrão, havia curvas e rios e montes e vales. O mais bonito não foi o desafio físico ou a paisagem. Foram as pessoas, os amigos que fiz. Toda a gente me ajudava e me abrigava. Eu quase não gastei dinheiro. Foi um ritual de passagem. Precisava de me distanciar e descobrir. Comecei a escrever crónicas todos os dias no Facebook. Havia tanta beleza.
Sem estar fechado em casa, tem uma rotina?
Eu acordo cedo, tomo uma "meia de leite" que é o meu único pequeno-almoço. Tenho um escritório com amigos que estão a fazer doutoramentos em Literatura e em Filosofia e eu trabalho num quarto desse escritório. Sou muito curioso e "a curiosidade matou o gato", diz o povo. Descobrir o outro é essencial para mim. Um escritor não guarda na gaveta o que escreve. Não está fechado em casa. Eu não gosto de ficar fechado. E, muito pessoalmente, só estou entediado se quero.
Vai escrevendo ou sabe o que vai escrever, o que será o livro?
Eu não acredito na inspiração. A escrita é um oficio. Literatura é comunicação. Tenho o livro todo feito capítulo a capítulo. Eu andava pelo Pão de Açúcar, interiorizava aquela realidade para transformá-la. Sabia que precisava de 60 mil palavras para escrever o livro. Quando cheguei à última página tinha conseguido essa medida.
Pão de Açúcar tem escrita comovente, de compaixão e, em contraste, de horror…
Depressa se passa do bem para o mal. Há amor com violência. Eu vejo isso nas pessoas. Somos capazes das maiores ternuras e maldades. Essas incongruências são importantes. O bom e o mau estão de mão dada.
A ficção pode parecer realidade?
Se é bem feita, a literatura é real. Eu quero um leitor que desconfie do texto. O leitor não é passivo, tem de se definir perante o que lê. Numa sessão sobre o Pão de Açúcar, alguém disse: "Para isto, lia uma reportagem. Eu sabia esta história." Não sabia porque fui eu que a inventei. As pessoas confundem um estilo, uma maneira pretensiosa de falar e de escrever complicado com escrever bem…
Um escritor revelado, premiado, prestigiado, figura pública, tem uma responsabilidade grande na sociedade. E precisa de olhar o mundo, seduzir as pessoas para a leitura, não é verdade? Tão cedo, receber o Prémio Saramago implica essa responsabilidade. Que preocupações tem?
A preocupação com pessoas da minha geração, a hipocrisia dos bons sentimentos públicos que estão permanentemente nas redes sociais. Entram em polémicas, andam em exaltação pública sobre coisas ridículas, desinteressantes. E, ao mesmo tempo, há situações sociais terríveis que são ignoradas. Há pobreza e há miséria. A minha miséria não é pobreza. Estamos em tretas. Nunca a estupidez foi tão autorizada, a ignorância é ativa. Temos os dados para chegar à frente das coisas, mas as pessoas são ativamente ignorantes. Há preconceitos. Sou otimista, apesar da minha irritação. Vivemos no melhor dos tempos. Temos uma sociedade estável.
A quem não tenha ainda descoberto o imenso prazer de ler. O que podemos dizer dos livros?
Os livros são uma forma de expressão da vida. A minha geração não tem consciência disso. Há um mundo de outras vidas e nós temos uma experiência tão limitada da vida. A leitura é uma janela segura para outras vidas. E se uma pessoa não gosta do que está a ler, fecha o livro.
Podemos falar de amor?
Amor… Felicidade para mim é amar e ser amado. Tenho pais exemplares, casados há 50 anos, extraordinários de amor e isso é o bom nas dores deste mundo. Eu procuro isso na escrita e na vida. Na escrita é o que tento ver.
Desejos, esperanças para o mundo?
A pergunta é muito abstrata! Eu tenho muitas esperanças. Dizer que tenho esperança na paz para mim não é nada. A paz promove-se. Não é uma esperança, é uma ação.
Foi boa a conversa?
Parar e conversar foi simples. E o quão bom é pararmos.
