No fado e na vida
Ela é a primeira mulher portuguesa que toca guitarra a acompanhar fado. Ele é fadista e canta ao som das suas notas. Unidos na música e no casamento.

Ela intervalou os alunos de piano e ele esqueceu o almoço, para a conversa marcada. Trazem o capacete na mão e o brilho nos olhos, o entusiasmo é o tom, do começo ao fim. Cumprem o tempo e desafiaram o trânsito da cidade, na urgência de chegar. As suas falas escorrem e completam-se, sem tropeços. Em fase de muita arte, esforço e expectativa, a singular história de Marta Pereira da Costa e Rodrigo Costa Félix começa num encontro feliz de amor e casamento, na vida e no fado. Constança e Vicente, os filhos gémeos de três anos, são testemunhas primeiras.
Que originalidade é a vossa? Marta
Rodrigo – No meio do fado, é ter duas profissões full time. Cantar e ser editor de som há 12 anos.
Como começaram? M
Como começaram?
R – A Marta tinha outra profissão e em pouco tempo transforma-se em guitarrista profissional.
M – Trabalhei quatro anos no LNEC, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, e dava aulas de piano em casa. Este ano deixei o LNEC e continuo a dar aulas de piano. E mesmo assim o meu dia está preenchido: ensaio, muito trabalho de casa, muitos fados, muitas guitarradas.
R – Aos 18 anos comecei a frequentar casas de fado. Cantei uma vez no Nove e Tal, que era do Nuno e do Gonçalo da Câmara Pereira, numa festa da minha mãe, e as pessoas gostaram muito. Aconteceu por influência de amigos, sobretudo do Carlos Guedes de Amorim, uma referência minha, que era o fadista preferido da minha mãe. A partir daí, ia e cantava sempre, comecei a ler poesia, a escrever também. Pelo convívio com os músicos e os fadistas, fui aprendendo o fado e as estórias do fado. Eu já tinha sido jovem agricultor, estava no 3.º ano de Comunicação Social na Católica. Interrompi o curso, e em 1997, aos 25 anos, fui estudar Engenharia de Som em Londres.
http://videos.sapo.pt/MWiLizjZeDoghHbdmA99
M – Eu não sabia acompanhar um fado sozinha. Não há partituras, mas aprendemos de uma forma auditiva e visual. A mesma nota pode tocar-se com diferentes dedos ou cordas. Experimentamos, tentamos, acompanhar fado é um pouco como cantar. Mas só o repertório de Coimbra está escrito e algumas coisas do Carlos Paredes. Os guitarristas não tinham formação musical, o acompanhamento de fado era uma arte popular. Sabemos a música, há uma melodia, mas não temos nada escrito. É um pouco como o jazz.
R – É diferente cantar com um guitarrista ou com outro. Há uma adaptação constante entre a voz e a guitarra.
M – Os guitarristas têm de ouvir Carlos Paredes, Armandinho, José Nunes. Ainda tive a sorte de conhecer o Fontes Rocha no Clube do Fado. Ele tocava lá aos domingos e substituía o Mário Pacheco. No início não tinha noção do guitarrista que ele era, sempre foi disponível para mim, ensinava-me, tocava comigo. Via-se que se divertia a tocar, eu ia ter com ele e perdíamos a noção das horas. O Fontes fazia festa com a guitarra. O neto, Ricardo Rocha, é genial.
R – A sensibilidade foi o maior ensinamento do Fontes, para quem toca e também para quem canta.
Que experiências vividas tiveram? R
M – A minha família é pequena. Pais, quatro tios, uma irmã que está em São Paulo. Eu fazia muito desporto. Joguei futebol de salão na equipa do Técnico, joguei andebol e fiz equitação. Às sextas-feiras à noite, organizávamos festas com os amigos na garagem, com karaoke e matraquilhos. Nunca até muito tarde, porque ao sábado às dez horas da manhã tinha aulas de piano e formação musical.
Apaixonaram-se por causa do fado? R
M – Eu comecei a ter lá aulas de guitarra com o Mário Pacheco, encontrava o Rodrigo às sextas-feiras. Tinha 18 anos. Aos 20 comecei a namorar. Um ano depois casámos.
R – Eu tenho 40 anos, a Marta, 30.
FADOS DE AMOR
É o título do último álbum de Rodrigo Costa Félix que pelas suas próprias palavras é “dedicado à mulher”. Inclui temas originais, revisitações de fados conhecidos e duetos com Katia Guerreiro e Aline Frazão.
E que vida é a vossa, a profissão e os filhos pequenos?
M – Muitas vezes o Rodrigo sai aos fins de semana com os miúdos e eu tenho de ficar a treinar em casa.
R – Os pais dão-nos apoio. E temos uma empregada, que dorme três noites por semana.
M – Eles sentem a nossa falta.
R – Nos fins de semana estamos quase sempre a trabalhar.
M – Eu vou levá-los de manhã à escola e lá arranjo maneira de os ir buscar. Dou aulas de piano em casa, quando tenho a porta fechada, eles sabem: “A mãe está a dar aulas.” Às vezes assistem aos ensaios sentadinhos, batem palmas. São muito musicais, é muito gira a relação que têm com a música. Ainda não tinham três anos e já cantavam o Hino Nacional com a letra toda. Veem a bandeira na rua e começam logo a cantar.
MAIS>
E o tempo para namorar? R
M – De vez em quando, se temos uma noite mais liberta, vamos jantar fora. Eu gosto muito de cozinhar, cozinhamos os dois. Podemos ir ao supermercado comprar coisas boas para cozinhar um para o outro, numa noite especial.
R – Fazemos tudo em casa, os dois tratamos dos miúdos.
M – De vez em quando, temos uma noite mais liberta, vamos jantar fora. Mas mesmo assim, estamos sempre a planear os dias seguintes.
“Sempre fui maria-rapaz, acho que não há coisas só para homens ou só para mulheres.”
E tem havido muito a planear. No 10 de junho, a Marta tocou na Eslováquia… M
… dias depois, teve o seu primeiro concerto no Largo do Chafariz de Dentro. M
… dias depois, teve o seu primeiro concerto no Largo do Chafariz de Dentro.
… e logo a seguir, os dois em Madrid. Em julho, a apresentação do disco do Rodrigo, no CCB. R
… e logo a seguir, os dois em Madrid. Em julho, a apresentação do disco do Rodrigo, no CCB.
M – Vamos ver como as coisas correm.
Em 2008, o Rodrigo gravou o seu primeiro CD, Fados d’Alma. Agora, Fados d’Amor. Que fados, que amor? R
Há discriminação das mulheres no fado? M
Há discriminação das mulheres no fado?
Há uma diferença de estilo? M
R – A guitarra é um instrumento violento, agressivo. As cordas são muito finas e esticadas. A Marta tem dores nos tendões.
M – Os homens também têm tendinites.
R – Não são todas as mulheres que querem ter calos nas pontas dos dedos, que querem ter as unhas cortadas rentes numa mão e na outra, ter as unhas compridas.
M – Acredito que as mulheres têm muita força e alcançam objetivos, quando querem lá chegar. Tem-me acontecido na guitarra portuguesa. Quero muito mostrar que sou capaz.
R – A Marta é totalmente responsável, deve haver pouca gente assim.
A crise, como a sentem? M
R – Eu, com esperança. Todas as crises são oportunidades, eu tenho trabalho estável e na vertente artística não nos tem faltado trabalho.
M – À nossa volta as coisas estão complicadas. Temos amigos sem trabalho e muitos a ir para fora.
R – Nesta altura, muita gente tem tendência para reagir em desespero.
M – Mas há situações de desespero.
R – E há as pessoas que se queixam e que aproveitam para explorar as outras, para subir os preços, para atrasar os pagamentos.
Há um ano festejámos o Fado Património Imaterial da Humanidade. O que muda? R
O Rodrigo viveu cinco anos em São Paulo, o que ficou do Brasil? R
