Histórias de Amor Moderno: “Esqueci-me de que ainda nem estava vestida, só tinha a toalha enrolada”

“Nessa noite começou uma pequena epopeia de ilusões e enganos, mas também de muita diversão e muito prazer.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Residência Espanhola (2002) / IMDB
17 de agosto de 2024 às 15:21 Maria Olívia Sebastião

Recordo-me perfeitamente da mãe dele a falar insistentemente de uns sofás que a vizinha do rés-do-chão tinha no terraço das traseiras. Eu não percebia quase nada de português, tal como ainda hoje não percebo, mas na altura tinha o ouvido treinado. O meu ano sabático, que tirei com a benevolência e a generosidade dos meus pais e que tinha como plano inicial dar uma indefinida volta ao mundo, acabou por resultar numa estadia em Lisboa que durou mais de oito meses. Era para ter sido uma semana "e depois logo se vê". Mas foi tamanha a paixão pela cidade que os oito meses me souberam a pouco.

Jantávamos, nessa noite, em casa do André, um pequeno apartamento no bairro da Graça, e a mãe dele estava de visita. Tratou-se de uma infeliz coincidência: o jantar tinha sido combinado três ou quatro dias antes, e nunca me passou pela cabeça que a mãe dele fizesse parte do encontro. Segundo o André, chegara nessa manhã, de táxi, cheia de queixas confusas. Na altura, não percebi bem o que aconteceu. O André tentou sempre ser discreto quanto ao tema, nunca o aprofundámos - e, em todo o caso, que direito tinha eu de perguntar "o que é que a tua mãe está aqui a fazer?" Éramos apenas amigos. Mas tudo podia ter sido diferente.

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Desse jantar, que era para ter sido romântico - ele cozinhava, eu levava uma garrafa de vinho e uma sobremesa -, só me recordo, embora com toda a clareza, da mãe dele a questionar vezes sem conta, "porque é que ela deixa ali os sofás, à chuva e ao sol? Porquê?", e a fazer uma expressão mista de incompreensão e de impotência. Mais tarde nessa noite, já na rua, depois de sairmos, só eu e o André, para beber uma cerveja, ele confidenciou-me que a mãe não estava bem. "É o meu pai, outra vez", mas não se alongou, não concretizou. Nunca soube o que acontecera ao certo.

Tornei-me próxima do André - entre nós havia uma amizade que se esticava até ao limite, uma espécie de dança entre o querer e o não querer, entre o desejar tudo e o temer acabar com nada - depois de o ter conhecido através do Vicente. O Vicente, esse sim, a minha grande paixão, mas uma paixão demasiado perigosa para levar a sério. Alto, elegante, bonito, artista, sem-vergonha, de sorriso branco e direito, o Vicente era o sonho mulato de qualquer rapariga que frequentasse aqueles ambientes onde os estudantes em Erasmus se misturavam com alguns jovens artistas locais e outros universitários boémios.

O Vicente e o André eram grandes, grandes amigos. Estudavam na mesma faculdade, jogavam futebol juntos na mesma equipa universitária, saíam à noite para os mesmos lugares. Em redor dos dois, havia sempre uma pequena multidão de acólitos, especialmente quando a noite e a festa aconteciam no Bar do Rio, uma espécie de cova pequena escavada no rochedo maciço que é o casario de Alfama onde se juntavam poetas e músicos, além de outros artistas de talentos indefinidos e tantas vezes iludidos. Foi nesse lugar mítico, que ainda hoje eu não tenho certeza se existe mesmo ou se foi apenas fruto do meu encantamento pela "cidade branca", como lhe chamou Wim Wenders, que eu conheci o Vicente. Alguém - dois músicos? Três? Mais? - tocava alguns êxitos da música brasileira, que eu, de resto, praticamente desconhecia nessa época, pois foi no Bar do Rio que eu aprendi quase tudo da música brasileira, do fado, da música cabo-verdiana, da cachaça, do flamenco, da sangria e da vida em geral.

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Embora o espaço fosse minúsculo, as pessoas não hesitavam em levantar-se e dançar. A festa acontecia por geração espontânea. Quem estava, pertencia a uma espécie de culto, ou de grupo secreto, ou até de família: mesmo quem não conhecíamos se tornava amigo de um instante para o outro. Quando o Vicente me pegou na mão e me pôs a dançar, só consegui sorrir, sem ter outro remédio senão deixar-me ir.

Nessa noite começou uma pequena epopeia de ilusões e enganos, mas também de muita diversão e muito prazer. Bem sei que há loucuras que devemos cometer na juventude, seja porque é preciso experimentar, porque a vida é curta, ou porque enquanto jovens ainda estamos a tempo de emendar as possíveis consequências de cada desastre. Mas esta loucura eu era capaz de a cometer mais mil vezes nesta vida. Assim eu tivesse pela frente o tempo que então tinha. E a elasticidade emocional e o desprendimento de uma juventude com poucas regras e um coração aberto, muito aberto. 

Não sei quanto tempo durou aquele período centrifugador em que eu dei tantas voltas e tão depressa que já não me sabia do direito ou do avesso. Talvez duas semanas. Talvez dez dias. Uma eternidade na minha memória, um segundo no meu peito desfeito. Fizemos amor tantas vezes e de tantas maneiras, e tudo pareceu só um estalar de dedos com os amanheceres trocados, as danças no meio das ruas de Lisboa às cinco da manhã, as garrafas de litro de cerveja bebidas nos miradouros mais insólitos - como o telhado de um amigo do Vicente, ao pé da Sé, com vista para o rio e sobre a Baixa e para o Chiado -, as festas, os jantares, as fogueiras no adro da igreja, as rodas em torno de alguém com uma guitarra e uma voz desafinada.

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Foi durante esses dias de loucura sem freio que acabei por conhecer o André. O André tinha outro tipo de carisma. Era quase um negativo do Vicente. Baixote, muito branco, sereno e reservado, guardava o charme para os momentos-chave em que, diante de um bom tema de conversa, exibia o que sabia e o brilhantismo do pensamento em frases e tiradas que nos deixavam a todos boquiabertos. Era um rapaz fascinante, com quem dava vontade de falar e falar, até que as palavras se esgotassem - mas sempre com a certeza de que, no fim dessas, outras palavras ele criaria, e com elas nova conversa surgiria, num movimento perpétuo, infinito.

O André era gentil comigo, muito comedido, quase cerimonioso. Queria saber de onde eu vinha, quem eu era, porque tinha aquela aparência. "Vivo em colónia, mas nasci em Berlim. Os meus pais mudaram-se para Colónia quando eu tinha seis anos." "Os olhos rasgados? A minha mãe é vietnamita." "Florence? De facto, não é um nome alemão, não. O meu pai é francês." E eu senti que ele queria realmente saber de mim, muito mais do que hipnotizar-me com loucuras passageiras de uma juventude com hormonas aos gritos. No entanto, entre nós havia uma linha invisível que não transpúnhamos. O Vicente era amigo dele. E eu gostava mesmo do Vicente.

Quando o Vicente, ao fim daquele período de intensa descoberta um do outro, começou a não fazer questão de estar comigo, não precisei de ouvir confissões para compreender o que se passava. Ele era assim mesmo, um homem jovem e exuberante à descoberta do mundo, a conhecer todas as raparigas que pudesse achar remotamente interessantes. Eu tivera o meu tempo com ele, a minha alucinação, o meu sonho e o meu desejo. Agora, seria a vez de outra. E, depois dessa, outra viria. Não me restavam ilusões.

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Foi pouco depois de eu e o Vicente nos termos desligado - pelo menos, fisicamente, ou romanticamente, ou eroticamente - e escassos dias após aquele desastroso jantar em casa do André que decidi eu mesma dar uma festa no apartamento onde estava alojada, perto da Avenida da Liberdade. Era um grande apartamento meio decrépito num quinto andar sem elevador, com baixos-relevos nos tetos, grandes portadas de madeira nas portas das varandas e um soalho mal envernizado, cujas tábuas rangiam da idade mesmo se caminhássemos descalços e cuidadosamente sobre elas.

Nessa noite, o André foi o primeiro a chegar, era mesmo muito cedo quando me tocou à campainha, eu tinha acabado de sair do banho. "Desculpa, confundi as horas", disse-me, justificando-se pela indelicadeza quando o recebi à porta ainda com a toalha enrolada à volta do corpo. "Entra, não te preocupes. Abre uma cerveja." Encaminhei-o para a sala, onde nos sentámos no chão e começámos a conversar. Esqueci-me de que ainda nem estava vestida, só tinha a toalha enrolada, e percebi que ele começou a ficar agitado - talvez excitado. Não sei porque reagi assim, mas de repente parei de falar e fui para o quarto acabar de me vestir. Ele não disse mais nada.

Quando a festa começou, ele não voltou a aproximar-se. E eu desejei muito que ele o fizesse, e arrependo-me até hoje de me ter levantado de ao pé dele quando conversávamos. Ao longo dessa noite, notei que se aproximou de outra rapariga. Falaram muito bem durante algum tempo, mas depois ela deixou-o só e foi ter com o Vicente. Não sei o que aconteceu. Só me lembro de ter visto o André sair. Não me disse nada. Parecia destroçado.

No dia seguinte, mandei-lhe mensagem, disse-lhe que tinha pena que tivesse saído ainda antes de a festa estar animada. Respondeu-me que teve de ser, que tinha de acordar cedo no dia seguinte. Mas eu sei que era mentira. As horas de acordar nunca antes foram impedimento para nenhuma das noitadas que fazíamos todos juntos. "Espero voltar a ver-te antes de me ir embora", disse-lhe. "Desta vez, a sós, verdadeiramente a sós. Só eu e tu." Ele demorou muito tempo a responder. Foram horas de espera. Finalmente, recebi uma mensagem que dizia "Se não nos virmos agora, fica para depois. Em último caso, visito-te em Colónia." E eu sorri.

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Não voltámos a encontrar-nos até ao meu regresso a casa. Já em Colónia, pontualmente eu mandava-lhe mensagem, sempre que encontrava um voo barato e direto. "Tens onde ficar, André, não tenhas problemas. Não vais ter despesas." A minha insistência tinha sempre como resposta qualquer coisa como "Sim, é uma boa hipótese". Nunca mais nos vimos.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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