"A coisa mais interessante a acontecer a pessoas negras não são pessoas brancas"
Duas irmãs gémeas negras no Sul dos Estados Unidos que escolhem vidas radicalmente diferentes. É o ponto de partida do segundo romance da norte-americana Brit Bennett, que explora temas como identidade, racismo e colorismo. A Máxima falou com a autora.
Foto: D.R.22 de julho de 2021 às 07:00 Joana Moreira
Quando A Outra Metade chegou às livrarias norte-americanas, em 2020, tornou-se rapidamente num bestseller. Num raro momento em que o racismo ocupava as conversas a uma escala global – a publicação aconteceu pouco tempo após a morte de George Floyd – o livro de Brit Bennett, que explora as nuances da negritude, conflitos familiares e questões de identidade, ganhou particular atenção, tanto dos leitores como da crítica.
Agora, a autora californiana de 31 anos, que já havia publicado o bem-sucedido Mothers, em 2016, vê a sua obra traduzida para português, pela chancela da Alfaguara.
Aquando da publicação de The Mothers, o seu primeiro livro [não editado em Portugal], foi comparada a nomes como Toni Morrison e James Baldwin. Como é ver-se ao lado desses escritores? A sua escrita nasce desse legado?
Esses são todos escritores que adoro e admiro por isso é uma honra incrível ser mencionada sequer como parte dessa linhagem. São escritores que adorei ler quando crescia e que ainda adoro, são escritores que contam histórias cativantes, mas também com frases bonitas e é isso que espero fazer no meu próprio trabalho. Por isso é uma grande honra ser mencionada. É uma honra ser considerada parte da sua linhagem literária.
Na literatura há temas que historicamente não foram tão explorados, nomeadamente a experiência negra. Este novo livro explora não só dois lados da experiência negra, mas fala também sobre a questão do colorismo e do que significa fazer "passar-se por branca". Teve isso em mente quando começou a escrever?
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Não creio. Todos os escritores que acabou de mencionar foram os escritores que eu cresci a ler. Eu não senti que essas experiências faltassem porque no meu mundo eu estava a ler muitos escritores negros que exploravam esses temas. Por isso não senti que estava a escrever para preencher nenhuma lacuna, de certa forma. Mas eu sabia que queria pegar em alguns destes temas da minha perspetiva, enquanto mulher de trinta e poucos anos no século XXI. Para mim isso é que era realmente diferente. Queria fazer um update deste tipo de narrativas sobre a formação da raça, mas da minha perspetiva, enquanto escritora contemporânea e pessoa que cresceu numa altura muito diferente destes escritores que têm escrito sobre estes assuntos há décadas.
A literatura está a passar por um momento particular de ascensão de novas vozes. Mais do que trazer diversidade, esta também pode ser visto como uma mudança política e social. Acha que as pessoas estão a aprender com estes novos livros sobre o que é a experiência negra no mundo?
Não sei e não sinto qualquer responsabilidade de ensinar. Acho que estamos num período entusiasmante para a literatura, posso falar com confiança particularmente na literatura americana, pensando em todas as escritoras negras agora, muitas delas [mulheres] a quem tenho a sorte de chamar amigas, ou só pessoas que admiro. Há tantos livros incríveis que estão a sair. Sinto-me muito sortuda por estar a escrever neste momento, mas não estou interessada em ensinar a alguém nada, só quero contar uma história cativante de uma forma bonita. É isso que os escritores que eu admiro fazem. E é o que eu espero continuar a fazer no meu trabalho.
O que espera que as pessoas retirem da leitura d’AOutra Metade?
Espero, primeiro que tudo, de que gostem. Não tomo por garantido o facto de alguém ler o meu livro porque há tantas outras coisas que as pessoas podiam estar a fazer e que precisam de fazer. Tirar tempo para se sentar e ler um romance por uns dias não é algo que tomo por garantido. Por isso, primeiro que tudo, espero que tirem prazer disso. Acho que é isso procuro nos livros, uma boa experiência de leitura antes de tudo. Depois disso, aquilo que retiro da experiência de escrever este livro é que a identidade é algo muito complexo, muitas vezes mais complexo do que a linguagem. E eu não dou respostas, não me proponho a dar respostas a ninguém ou a resolver nenhum destes problemas. O que significa quando a identidade é tão mais complexa do que a linguagem que nós temos para falar sobre identidade? E como é que falamos de identidade sabendo isso?
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Numa entrevista há uns meses disse que havia uma tendência para as pessoas pensarem que as histórias mais interessantes são as do conflito entre pessoas brancas e negras, mas que para si a coisa mais interessante a acontecer a pessoas negras não são as pessoas brancas. Acha que há algum tipo de resistência em tentar manter a experiência branca nas histórias e experiências de pessoas negras?
Às vezes. Acho que encontramos isso em qualquer tipo de grupo marginalizado. É o mesmo quando se está a falar do trabalho de escritores LGBTQ, em que tem de haver uma pessoa heterossexual ou uma visão heterocêntrica no livro, ou uma perspetiva branca, ou masculina, o que seja. Acontece em muitas tradições. Isso é comercial, para tentar fazer chegar o livro a determinadas audiências ou insistir que se precisa dessas pessoas dominantes no centro do livro, mesmo se isso significar que elas são o conflito, isso continua a coloca-las no centro de alguma forma. Portanto acho que pode haver uma tendência para isso, mas eu também acho isso simplesmente aborrecido. É o que eu disse: a coisa mais interessante a acontecer a pessoas negras não são pessoas brancas e a ideia de que é assim que as nossas vidas são estruturadas é por um lado absurdo, mas também completamente falso (risos). Para mim parece ficção cientifica ter a vida orientada em torno da branquitude. Não estou interessada em escrever sobre isso. Estou interessada em escrever sobre a vida de pessoas negras e as suas relações umas com as outras. Para mim é sobre isso que é este livro. É sobre uma família negra, uma comunidade negra. Depois há outras personagens, mas o centro deste livro é esta família negra que depois se divide em diferentes direções.
Falando de Stella, a irmã gémea que tenta 'passar-se' por pessoa branca. Li que não queria que ela fosse julgada pela sua escolha. Mas, ao mesmo tempo, as escolhas que ela fez levaram-na à infelicidade. Como encontrou esse equilíbrio ao escrever a história?
Não acho necessariamente que a infelicidade seja um castigo ou a felicidade uma recompensa. Acho que esses são só resultados da nossa vida. Eu não queria que a narrativa fizesse aquilo que as histórias normalmente fazem que é a Stella ser empurrada de uma janela no fim do livro. Não queria que o livro instituísse algum tipo de castigo à personagem. Mas sabia que queria que ela tivesse uma relação complicada com a sua nova vida, e ter estes momentos de alegria, mas também estes momentos de tristeza profunda e alienação, mas para mim isto não é um castigo. Até porque não diria que a Desiree tem a vida mais feliz também (risos). Acho que ambas acabam por ter esta mistura de experiências, o que para mim é a vida, fazemos as nossas escolhas e às vezes estamos felizes e outras vezes não. Mas são as escolhas que tomamos. Para mim o mais importante foi ter a Stella e vê-la a tomar consciência da sua decisão e perceber que, quer a tenha feito feliz ou não, foi o que ela escolheu para ela própria. Isso para mim era o mais importante. Vê-la escolher em vez de ser o livro a escolher por ela.
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A Outra Metade, de Brit Bennett, Editora Alfaguara.