Abaixo a ditadura do Kamasutra (e do Grey)

Recriar cenas de filmes pornográficos? Copiar as inspirações dos best-sellers modernos?! Bem vistas as coisas, talvez seja melhor não fazer isto em casa. Marta Crawford explica porquê

Abaixo a ditadura do Kamasutra (e do Grey)
12 de junho de 2013 às 06:00 Máxima

Acreditem se quiserem mas a conversa telefónica com Marta Crawford foi mais ou menos esta:

– Olá, como vai? Ainda se lembra de mim?

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– Olá. Sim, lembro-me, claro.

– Estou a fazer um artigo sobre a quantidade de livros de sexo que têm saído e queria...

– Não me vai falar sobre as 50 Sombras de Grey, pois não?

– Não, quer dizer, não só mas também. Na verdade, eu queria...

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– É que eu não li o livro, nem vou ler e estou cansada de responder a perguntas sobre ele.

Para quem não sabe, a minha interlocutora é sexóloga. Uma sexóloga que já fez programas de televisão onde ensinou a pôr preservativos e a ter um orgasmo, mas que nunca leu o best-seller sexual da última década (6 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo e 270 mil em Portugal, em menos de um ano).

As mentiras dos filmes pornográficos

Anne Semans, gestora da cadeia de sex-shop’s Babeland.com, diz que os homens sempre imitaram os atores pornográficos. Mais: eles acreditam na imagem feminina que é vendida naqueles filmes. Em 2008, a empresa fez um estudo sobre comportamentos sexuais e uma das perguntas para as mulheres era: aponte as ideias mais absurdas que os homens fazem das parceiras por causa do que veem na pornografia. Confira o top 4 das respostas mais dadas.

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1. Todas as mulheres atingem o orgasmo apenas com sexo vaginal.

2. Elas adoram espalhar sémen no rosto.

3. Elas acham o sexo anal muito atraente.

4. As mulheres preferem sempre pénis grandes (em tamanho e diâmetro).

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Estranho? Talvez. Ela entende o fenómeno mas resume-o a mais uma moda: “Foge da sexualidade mais comum, digamos. Vai de encontro a uma certa libertação e evolução de hábitos, potenciada pela Internet e pela abundância de sites e conteúdos sobre sexualidade.”

O livro da britânica E.L. James – que descreve as aventuras sexuais de um milionário lindinho e de uma universitária que passa de virgem a ‘doutora gemido’ enquanto o diabo esfrega um olho – foi rapidamente classificado pelos americanos como porn-mummy (pornografia para mamãs).

Marta Crawford aceita que existe um paralelo entre os filmes para adultos e este tipo de literatura. Mas sublinha as diferenças: “A ser pornografia, é servida numa caixinha com laçarote.” Certo é que tem efeito quase imediato. “Muitas mulheres têm dificuldade em fantasiar e, nesse livro, está tudo descrito ao pormenor. É fácil para a leitora imaginar-se no papel da protagonista. Parece que é isto que acontece a muitas mãezinhas que normalmente só pensam nos filhos.”

O problema é quando o argumento do livro passa a dominar a vida real. Um pouco como acontece aos homens que consomem muita pornografia e não conseguem enquadrá-la no quotidiano.

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Talvez o salto brusco das revistas pornográficas para as cassetes VHS – com direito a prateleira maldita no videoclube – e destas para a Internet tenha sido demasiado brusco. A verdade é que, hoje, qualquer jovem com telemóvel e computador pode passar o dia a ver pornografia. Quanto mais imaturo for, menos saberá enquadrar o que viu. E aí começam os problemas – para eles e para as parceiras.

“Cada vez há mais homens de várias idades a aceder à pornografia e a ter uma ideia algo distorcida do que é a realidade”, confirma a sexóloga. “Aquilo é uma sucessão de grandes planos e ‘dá-lhe’ e ‘faz’, e por aí afora. Há ali uma grande excitação que provoca uma resposta rápida, o orgasmo, mas tudo não passa de um mecanismo, de uma coisa quase animal.”

A especialista sabe do que fala. “Recebo muitos casais que já fizeram tudo e mais um par de botas mas não têm intimidade nenhuma. Ou seja, continuam sem saber que a sexualidade é uma questão de cumplicidade e de partilha. Mas realmente isso não se aprende num filme pornográfico.”

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Sejamos sinceros: o sexo, como a vida, tem um lado exuberante e outro tranquilo, e nem o Marquês de Sade aguentaria uma amante que o obrigasse a mascarar-se, algemar-se e pendurar-se nu de cabeça para baixo, todos os dias. Que o digam os especialistas. No livro Rock Her Wold: The Sex Guide for the Modern Man, de Adam Glassner, pseudónimo do realizador de filmes pornográficos Seymore Butts, o próprio desmistifica o mundo dos filmes com bolinha. Depois de contar histórias hilariantes de atores e atrizes, muitas delas envolvendo quedas e acidentes em posições humilhantes, Butts aconselha os leitores a esquecerem este universo quando se deitam com uma mulher. “O melhor que têm a fazer é preocupar-se em dar-lhe prazer e esquecer as performances”, disse em entrevista, citado pela revista Salon.com.

As ditaduras que já enfrentámos

Marta Crawford diz que a trilogia As 50 Sombras de Grey não é, de forma alguma, um guia para a sexualidade dos anos 2000. Encara o fenómeno como “apenas mais uma moda a juntar a todas as que surgiram nos últimos 10 anos”. E dá outros exemplos.

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BDSM (Bondage, Dominação, Sadismo e Masoquismo)

“Trabalho com pessoas apologistas das práticas BDSM e não tenho qualquer problema com isso. Mas acho que é um universo de alguns casais e estar a generalizar tais práticas parece-me perigoso.”

Swing

“Agora é a BDSM, antes foram as orgias, os ménages e o swing. Parecia que todos os casais tinham de fazer trocas para terem uma relação feliz. Não, cada um tem de se sentir bem na sua pele. Não há um guia para a sexualidade. Nem para um final feliz.”

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Brinquedos sexuais

“As pessoas compraram, quiseram experimentar, mas depois acabaram as pilhas e ficaram para lá encostados às escovas de dentes sem pilhas.”

Kamasutra

“Tal como outros livros com imagens, servem para fazer uma brincadeira de uma noite, e pouco mais.” “Vou pôr aquilo em cima da cama e depois imitar? Se a preocupação do casal for a posição e não o momento, bem podem ficar a noite inteira a fazer ginástica...”

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Marta Crawford também não aconselha a imitar o que se vê nos filmes. “Os homens ficarão sempre a perder. Comparados com os atores pornográficos, terão sempre o pénis mais pequeno, aguentarão menos tempo a relação e serão sempre menos habilidosos naquelas coreografias.”

Não vale a pena pensar que as atrizes pornográficas dominam todas as técnicas do Kamasutra ou que tiram partido dessas coreografias com 17 séculos – sim, o Kamasutra foi escrito no século IV por um filósofo hindu, Vatsyayana, e, hoje, as gravuras que o ilustram provocam mais vontade de rir do que outra coisa qualquer (ver caixa).

Mais: lá porque as raparigas do Gulosas e Perigosas parecem felizes da vida quando levam palmadas no traseiro, isso não quer dizer que gostem realmente daquilo. Estão a representar, ok?

Mais um conselho: pancada, algemas e palavrões durante o sexo só devem ser praticados com a total cobertura do parceiro e nunca nos primeiros encontros. Chamar nomes e bater a um homem que se conhece há dois dias pode ser perigoso – ninguém lhe garante que não acaba na esquadra, acusada de violência doméstica.

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E nunca, mas nunca se esqueça: certas cenas tiradas do contexto deixam de ser excitantes para passarem a ser simplesmente grotescas. Uma boa imagem de como os filmes pornográficos nada têm a ver com a vida real é dada no filme Love Actually (O Amor Acontece) em que Hugh Grant faz de primeiro-ministro britânico.

Um casal de atores conhece-se durante a rodagem de um porno. O que equivale a dizer que, mais coisa menos coisa, cinco minutos depois de se cumprimentarem com um aperto de mão estão a simular sexo oral um ao outro. Entretanto, começam a sair juntos. Mas no final do primeiro serão, ao deixá-la em casa, ele só arranja coragem para lhe dar um beijo casto, nos lábios, no último minuto!!!

Graça, guionista, 33 anos, faz parte do crescente número de mulheres que rejeita a ideia do sexo-espetáculo. Está farta da tirania do Kamasutra e recusa-se a encarar a relação sexual como uma aula de aeróbica conduzida por Jane Fonda quando, na melhor forma, vendia cassetes VHS com as suas piruetas. “Estou-me completamente nas tintas para isso. E o meu marido também. Por vezes até penso que tenho um botão qualquer desligado. O que eu gosto mesmo é do sexo. Os adereços e afins distraem-me daquilo que, para mim, é essencial: a junção dos corpos.”

Com tudo o que já leu em jornais e revistas, com tantos programas e séries repletos de cenas de sexo escaldante, chegou a questionar o seu apetite. “Durante muito tempo, tive medo de que a minha vida sexual fosse um marasmo. Depois percebi que não, que é bom fazer amor com o meu marido sabendo que nenhum de nós tem grandes fantasias ou fetiches.” O que, sublinha, “não quer dizer que o façamos sempre na posição do missionário. Nem por sombras. Temos sexo bem variado e não há cenários proibidos. Só que nos limitamos a usar o corpo”.

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Pequeno pormenor: Graça também não leu as 50 Sombras de Grey. Nem o Kamasutra de Grey. Nem sequer o Kamasutra...

 

PASSAGENS HILARIANTES DO KAMASUTRA

Sim, o Kamasutra original é um documento do século IV que se destinava a ensinar os nobres indianos a tratarem as amantes. É natural que hoje pareça um pouco... desfasado. Veja algumas pérolas que encontrámos no livro Kamasutra – As regras do Amor:

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Como seduzir uma mulher num serão caseiro

“Se a amante tiver de passar aí a noite [em casa do homem], virá recém-banhada, perfumada e coberta de joias e adereços; o seu amante haverá de oferecer-lhe refrescos variados, fá-la-á sentar-se à sua direita e acariciá-la-á tocando-lhe a parte descoberta do decote da sua indumentária interior, rodeando-lhe a cintura com o braço direito; entabulará uma palestra ligeira sobre temas alegres e questões amorosas e picantes. Depois terá início um pequeno concerto musical, sendo servidas aos presentes algumas bebidas finas.”

Mulheres com quem se pode ‘trocar amores’

“(...) é permitida a cópula com qualquer mulher que já teve cinco amantes. É absolutamente proibido coabitar e ter relações sexuais com leprosas, lunáticas, banidas de casta, que não sabem guardar segredos, que manifestam publicamente os seus desejos sexuais, atacadas de albinismo (impuras), com as que têm a pele intensamente escura, com as que têm mau hálito, com as de parentesco próximo, com as que são amigas, com as que vivem com um asceta; por fim, com a mulher de um parente, de um amigo, de um brâmane letrado ou de um rei.”

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Sobre as quatro espécies de abraços entre um par

“Quando uma mulher se enrosca ao corpo de um homem, como um réptil em torno do tronco de uma árvore, e puxa a cabeça do amante contra a sua com intenção de beijá-la ou, dando-o a entender com um leve som de ‘souttsoutt’, o abraça e o olha com desejo, a este amplexo dá-se a designação de enrolamento réptil.”

Elogio às carícias com unhas e dentes

“Uma jovem, sobre os seios da qual se vejam sinais de unhas, impressiona logo, mesmo a um estrangeiro (...). O homem que se mostra marcado de unhas e dentes é um vencedor entre as mulheres. Nada melhor para inspirar o amor do que as marcas de unhas e dentes de uma mulher.”

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“Entre as maneiras de bater pode-se incluir o emprego de instrumentos próprios, usados em determinadas regiões da Índia, principalmente nas do Sul, tais como: a cunha de madeira para os seios, as tenazes para a cabeça, as pinças para o dorso e os perfurantes para as faces. Vatsyayana condena estes costumes por serem brutais e perigosos.”

Classificação de homem e mulher pelo tamanho do sexo

“O homem divide-se, consoante a grandeza do seu lingam (pénis), em três categorias, a saber: o homem-lebre, o homem-touro e o homem-cavalo. A mulher igualmente, segundo a dimensão do seu yoni (clítoris), é uma gazela, uma égua ou uma elefanta.”

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