Ana Gomes: "fui e serei sempre fiel às minhas convicções"
Sem medo. É este o traço que ressalta da personalidade rebelde de Ana Gomes, a personalidade política e a mulher de causas. O seu maior trunfo? A rara independência que resulta na liberdade para combater a corrupção e defender os valores da democracia.
Foto: Pedro Ferreira09 de abril de 2020 às 07:00 Maria Elisa Domingues
As causas são aquilo que melhor define Ana Gomes. Inquirida sobre a possibilidade de uma candidatura à Presidência da República, a resposta imediata é: "Eu não me movo por cargos, mas por causas." Mas não deixa de acrescentar: "Aprendi que, na vida, nunca se deve fechar nenhuma porta." Chefe da delegação portuguesa para as negociações com Timor-Leste, em que Ana Gomes também participou, nos anos 90, o embaixador jubilado Fernando Neves não hesita nas palavras: "A Ana dedica-se às causas de corpo e alma, sem restrições, e até conseguir os seus objectivos com enorme apego à justiça e aos valores do humanismo." A energia e a persistência, Ana Gomes atribui-as à mãe. Ao pai, a racionalidade e o interesse pela política. A ambos, uma educação aberta. Os afastamentos ocasionais da mãe para acompanhar o marido, oficial da Marinha Mercante, levaram-na e à irmã ao colégio interno da Baforeira, na Parede, mas ambas rapidamente convenceram os pais a apenas dormir no colégio enquanto frequentavam o liceu, em São João do Estoril, fórmula decerto inédita: "O liceu era misto e ao pé da praia, e era para onde íamos quando algum professor faltava. Adorei aquela liberdade. Tive alguns professores óptimos e ainda mantenho amizades desse tempo."
A consciência da opressão que se vivia no País chegou-lhe cedo, na adolescência, acompanhando o pai aos comícios da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD) e do Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE) por ocasião das eleições legislativas de 1969. No liceu, tornar-se-ia activista do Movimento Associativo de Estudantes do Ensino Secundário (MAEES), pelo que continuar a actividade política na Faculdade de Direito era uma evidência: "Fui para a cantina ouvir o que propunham os vários grupos políticos que lá existiam. Achei que os do MRPP, que eu não sabia bem o que era, seriam os melhores e, ainda por cima, tinham humor. Fui recrutada para fazer pinturas na rua contra a guerra colonial, numa espécie de prova iniciática. Rapidamente passei a fazer parte daqueles que eram conhecidos como os ‘agitadores’." Mas o gosto pela independência, também financeira, levou-a a procurar emprego, através de um anúncio de jornal, no restaurante Caldeiro, que era propriedade de uma actriz muito popular na época, Maria José Curado Ribeiro. A filha da actriz, Rita Ribeiro, e a actriz Guida Maria já lá serviam à mesa.
Em Dezembro de 1973, Ana Gomes fez parte de um grupo de quatro alunos que foram entregues pelos "gorilas" da Faculdade de Direito à polícia de choque que os levou para os calabouços do Governo Civil. "Na carrinha tratámos de comer as agendas, daquelas de folhas fininhas e já antevendo tais eventualidades, onde anotávamos os contactos. A sorte foi o marido da Teresa [Serra] ser adjunto de um ministro que logo tratou de a tirar dali e, obviamente, tiveram de nos libertar todos."
O casamento concretizou-se em Maio de 1974. Mas com o marido na tropa, "a ganhar miseravelmente", era ela que aguentava a casa, dedicando-se também à faculdade. "O MRPP ganhou a Associação de Estudantes, em Novembro de 1974, e eu pertencia quer à direcção da Associação, quer à comissão de gestão da faculdade. Nós tínhamos saneado os professores, o que foi um disparate, obviamente, e era preciso contratar outros, fazer os mapas das aulas… Enfim, pôr a faculdade a funcionar. Entretanto, nasceu a minha filha, em Agosto de 75, e começaram a ser demasiadas coisas. O meu marido já trabalhava e podia sustentar a casa, pelo que eu me desempreguei e saí da faculdade. Mais uma vez, as línguas foram utilíssimas. Fui colocada na comissão de imprensa do comité central do MRPP, onde havia solicitações constantes da imprensa estrangeira."
No 25 de Novembro, Ana Gomes esteve do lado das forças democráticas, com o MRPP a apoiar o general Ramalho Eanes e o PS contra o PCP. Mas no início de 1976 decidiu afastar-se da "Revolução a todo o vapor", um dos slogans daquele período, e voltar a trabalhar como secretária de uma empresa de importação e de exportação, e inscrever-se à noite na faculdade que havia abandonado. Terminou o curso em 1979, graças, em boa parte, "a uma fabulosa rectaguarda", a dos sogros e da cunhada que a ajudaram a tomar conta da filha, ainda bebé. Para fazer o estágio de advocacia, colocou um anúncio: "Respondeu-me o dr. Manuel Figueira, especialista em Direito Internacional e Marítimo, que procurava alguém que soubesse línguas. Foi um excelente patrono. Entretanto, por acaso, encontrei um amigo que me desafiou a fazer o concurso para a carreira diplomática, ideia que não me passara pela cabeça. Assim fiz, um pouco desportivamente, porque gostava de estar a trabalhar no escritório e era monitora na faculdade. Mas acabei [o concurso] classificada em primeiro lugar, o que decidiu a minha vida."
Jovem funcionária do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), surge-lhe o convite para a assessoria diplomática, em Belém, com o general Ramalho Eanes: "Foi um privilégio ter trabalhado com ele. Cada presidente faz o cargo à imagem da sua personalidade e a dele é a integridade absoluta. Além disso, o cargo proporcionou-me uma perspectiva global das questões políticas internacionais."
Entre os assuntos que ficou a conhecer melhor, contava-se a situação de Timor-Leste, o "unfinished business", ou seja, o assunto por resolver da descolonização portuguesa. Maria de Lourdes Pintasilgo era então conselheira especial do presidente Eanes para Timor-Leste, depois de ter sido primeira-ministra, sendo por isso a ela que Ana Gomes passava a documentação diplomática mais relevante. Essa informação ser-lhe-ia preciosa na Missão Portuguesa junto das Nações Unidas, onde foi colocada depois de passagens por Genebra, Tóquio e Londres. Tinha também trabalhado no MNE no "dossier" Timor, enquanto integrava o Gabinete de Projectos Especiais.
Quando cai do poder o presidente Suharto, a 21 de Maio de 1998, na Indonésia, Ana Gomes acompanhou as conversações entre as autoridades portuguesas, chefiadas pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, e as autoridades indonésias, dirigidas pelo seu homólogo, Ali Alatas, relativamente à situação de Timor. Ao ser decidido abrir em Jacarta uma "secção de interesses", nada mais natural do que a sua indigitação para o posto. "Nas negociações de Timor, a Ana foi sempre uma colaboradora excepcional, construtiva e disciplinada", diz-me Fernando Neves. "Eu uso propositadamente este adjectivo, pois pela imagem que ela tem poderiam pensar o contrário. Mas isso é muito importante numa negociação como aquela, em que só pode falar uma pessoa. Em Jacarta, primeiro na secção de interesses de Portugal na Embaixada da Holanda, e depois como embaixadora, a Ana fez um papel extraordinário e criou uma empatia com os timorenses que foi uma mais-valia para as negociações. Como digo no livro O Negociador*, que relata o processo das negociações com a Indonésia e as Nações Unidas, foi de um invulgar profissionalismo o entusiasmo com que se dedicou ao estreitamento das relações com a Indonésia sem ‘hard feelings’, ficando, até, amiga de Ali Alatas, que a admirava."
Ana Gomes abriu a "secção de interesses" de Timor-Leste a 30 de Janeiro de 1999, graças à hospitalidade da Embaixada da Holanda, mas a presidência portuguesa da União Europeia, em 2000, exigiu a abertura de uma Embaixada de Portugal em Jacarta, onde reuniriam os chefes de missão europeus, o que se revelou uma extraordinária plataforma de defesa da posição portuguesa na questão de Timor-Leste. O restabelecimento das relações diplomáticas entre Portugal e a Indonésia, que havia sido interrompido em 1975 após a ocupação de Timor-Leste, foi facilitado também pela pujança da presença cultural portuguesa na Indonésia demonstrada no êxito da exposição sobre artes decorativas portuguesas realizada no Museu Têxtil de Jacarta que foi recuperado com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.
Para Ana Gomes, a estadia na Indonésia foi uma experiência de vida determinante: "A ideia de a Indonésia fazer um referendo sobre a autodeterminação de Timor, quando se negociava apenas um estatuto temporário de autonomia, foi uma surpresa para todos. A 30 de Agosto de 1999, 80 por cento dos timorenses votaram favoravelmente. Mas seguiu-se uma enorme ‘onda’ de violência das milícias pró-indonésias e cerca de 250 mil timorenses foram levados à força para Timor Ocidental. Passei a visitar essa parte de Timor com o João Câmara que havia estado preso com o Xanana Gusmão e que, mais tarde, foi funcionário da Embaixada. Tentávamos persuadir as pessoas a voltarem para Timor-Leste, garantindo-lhes que seriam bem-vindos. Foi um trabalho arriscado - eu cheguei a ter uma catana apontada à cabeça - , mas exaltante. Criámos um programa com incentivos financeiros para apoiar o regresso das pessoas às suas terras, em ligação permanente com Xanana Gusmão e com uma grande ajuda da Igreja Católica e, ao fim de dois anos, metade da população tinha voltado. Entretanto, eu aprendera a falar a língua e criámos um programa semanal de rádio em que eu participava, juntamente com Ali Alatas, persuadindo essas populações de que havia condições de segurança para voltar. Essa sinergia com as autoridades indonésias resultou numa amizade com Ali Alatas que durou para a vida."
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Dessa passagem pela Indonésia, diz-me o embaixador José Freitas Ferraz, director do Instituto Diplomático e amigo de Ana Gomes: "Viviam-se tempos dramáticos em Timor e a Ana, para além do excelente trabalho, corporizou perante a comunicação social e a opinião pública as angústias e as esperanças dos portugueses que seguiam dia a dia, durante o ano de 1999, o processo que levaria à independência de Timor."
Em Março de 2002, Ana Gomes veio a Portugal quando se realizaram as eleições legislativas na sequência da dissolução da Assembleia da República, em Dezembro de 2001, e assistiu à derrota do Partido Socialista, do qual Ferro Rodrigues era o secretário-geral, para o PSD de Durão Barroso: "Fiquei irritada por o Ferro, um homem extremamente sério, ter perdido as eleições. No dia seguinte, fui ao Largo do Rato inscrever-me como militante do PS. Mais tarde, no final do ano, ele convidou-me para a direcção do PS, como secretária para as relações internacionais e para integrar as listas para o Parlamento Europeu. Devo muito ao partido e tenho consciência disso. Mas não sou uma apparatchik [expressão utilizada pelo Partido Comunista soviético para definir um membro do aparelho partidário que cumpria cegamente as diretivas do mesmo]. Fui e serei sempre fiel às minhas convicções."
No Parlamento Europeu, onde se manteve durante três mandatos, Ana Gomes destacou-se nas Comissões dos Negócios Estrangeiros, dos Direitos Humanos e da Segurança e Defesa. Cedo as suas posições no combate à corrupção a distinguiram e se tornou conhecida a sua coragem física, graças ao seu envolvimento na causa dos refugiados. Conta-me Fernando Neves: "Só quem tenha estado junto dos refugiados e das vítimas da guerra saberá o que significa viver essas situações. Uma vez, a Ana apanhou um táxi, em Nova Iorque, e o condutor era do Darfur. Começaram a conversar e, a certa altura, ele diz-lhe: ‘A única pessoa que nos apoia é a Ana Gomes.’ Foi uma festa."
As posições frontais de Ana Gomes granjearam-lhe inimigos dentro e fora do seu partido ou da família política europeia. Assim, estabeleceu contacto com a jornalista Daphne Caruana Galizia que, na ilha de Malta, e após a publicação dos Panama Papers, revelou as ligações do governo trabalhista de Joseph Muscat e de outros membros do governo a esquemas de evasão fiscal, através de empresas offshore, tendo sido assassinada por isso. "Eu fui a Malta numa missão do Parlamento Europeu (PE), em 2017, e fiquei muito impressionada com a coragem da Daphne. Mantenho, aliás, contacto com a família. Mas quando voltei para Estrasburgo, apercebi-me que mesmo na minha família política dentro do PE, alguns queriam proteger o governo de Muscat."
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Nos últimos meses, em Portugal, Ana Gomes tem-se destacado pelas suas posições em relação a dois casos mediáticos: o caso Rui Pinto e o Luanda Leaks. Quando, em 2015, foram divulgados os milhares de documentos confidenciais que constituíram o Footbal Leaks e que afectaram o futebol português e o futebol europeu, Ana Gomes interessou-se pelo tema, dada a gravidade das acusações sobre contratos ilegais, comissões dissimuladas e outros esquemas de evasão fiscal, mas desconhecia que o hacker que entrara nos servidores da empresa Doyen e do Benfica, entre outros, era português. "Foi William Bourdon, o advogado francês de Rui Pinto e que defendeu Edward Snowden, que me pediu ajuda quando ele [Rui Pinto] estava detido em Budapeste. Por essa altura, aquilo que Rui Pinto descobrira já merecera editoriais em toda a imprensa internacional. Ele revelou factos de enorme gravidade que justificariam a sua colaboração com a polícia portuguesa."
Como é sabido, não foi isso que aconteceu, tendo Rui Pinto sido extraditado para Portugal e encontrando-se em prisão preventiva, há cerca de um ano, pronunciado por 90 crimes. A questão do tratamento a dar a Rui Pinto tem-se revelado extremamente complexa, com personalidades de todos os quadrantes a esgrimirem argumentos jurídicos, políticos e éticos num sentido e noutro. Para Ana Gomes, a questão é clara: "Se Rui Pinto cometeu o ilícito de que o acusam, designadamente na alegada tentativa de extorsão ao duvidosíssimo [grupo financeiro] Doyen, pois que o levem a julgamento. Mas isso não impede que ele devesse colaborar com as autoridades portuguesas, enquanto denunciante, tal como estava a colaborar com as francesas. O que ele divulgou é de tal forma relevante que, no início do ano, eu fui entregar-lhe na prisão o prémio Whistleblower, um prémio europeu para denunciantes promovido por um dos grupos políticos do PE, a Esquerda Unitária Europeia."
Os whistleblowers deverão ficar protegidos como denunciantes, em Portugal, e à semelhança do que acontece noutros países europeus quando for transposta para a lei nacional a directiva europeia aprovada pelo PE, em Abril passado (a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, tem dito que tal irá acontecer quando for aprovado um pacote de legislação anticorrupção). No entanto, muitos juristas consideram que a figura de whistleblower não se aplica a Rui Pinto, já que não se trata de um funcionário que denunciou a sua organização, como são, por exemplo, os bem conhecidos casos de Edward Snowden, funcionário da CIA que denunciou os sistemas globais de vigilância norte-americanos, ou do francês Antoine Deltour, auditor da consultora PwC, que esteve na origem da LuxLeaks, nem denunciou, em primeiro lugar, os eventuais crimes encontrados às autoridades.
Tão ou mais célebre que o caso Rui Pinto foi o processo que opôs Ana Gomes a Isabel dos Santos, a empresária multimilionária e filha do ex-presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. Em Outubro de 2019 e na sequência de denúncias sobre a cleptocracia angolana que, há muito, vinha fazendo, Ana Gomes escreveu no Twitter: "Isabel dos Santos endivida-se muito porque ao liquidar as dívidas ‘lava’ que se farta! E (…) o Banco de Portugal não quer ver." Em Janeiro deste ano, o tribunal de Sintra indeferiu uma queixa de Isabel dos Santos contra Ana Gomes, alegando que o direito à liberdade de expressão "deverá prevalecer sobre os direitos de personalidade (reputação e bom nome)" da empresária. Mas o que verdadeiramente fez recair todas as atenções sobre Ana Gomes foi o facto de, dias depois de ser conhecida esta decisão do tribunal português, ter rebentado o escândalo Luanda Leaks baseado em cerca de 715 mil documentos apresentados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação e publicado, inicialmente, por 36 órgãos de comunicação social de vinte países – entre nós foram divulgados pelo Expresso e pela Sic – que expôs, na cena internacional, os esquemas de enriquecimento ilícito da mulher mais rica de África, à custa de alegada corrupção envolvendo as principais riquezas de Angola, ou seja, o petróleo, os diamantes e a terra, através das suas posições de liderança nas respectivas empresas estatais por nomeação do pai.
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As imagens de miséria absoluta da comunidade piscatória da Praia da Areia Branca, expropriada dos seus parcos haveres, em 2013, por um projecto de urbanização megalómano, no qual Isabel dos Santos seria uma das principais interessadas, e expostas pela televisão são difíceis de esquecer. O enriquecimento ostensivo da "Princesa de África" causava, há muito, a indignação de quem queria ver. "Há uma grande hipocrisia, em Portugal, nas reacções ao Luanda Leaks", considera Ana Gomes.
"Os factos revelados e tudo o mais que falta saber não deviam ser novidade para ninguém. Comecei a questionar o enriquecimento de Isabel dos Santos quando ela comprou a Efacec com empréstimos dos bancos portugueses de que era accionista, o que, desde logo, representava um conflito de interesses, a partir dos factos amplamente expostos na imprensa portuguesa. Escrevi cartas a todos os responsáveis, reguladores e judiciais, e não obtive qualquer resposta. Houve uma enorme conivência de várias entidades, não só dos bancos, mas também das entidades reguladoras e daqueles a quem eu chamo os facilitadores, isto é, os grandes escritórios de advogados e as empresas de consultoria que ela usava para dar uma fachada de respeitabilidade às suas negociatas. E nada quiseram ver. Há um problema de falta de qualidade da democracia. Bem sei que as entidades reguladoras e fiscalizadoras têm falta de meios e, sobretudo, de perícia, mas houve também muita negligência. E também fechar os olhos à proveniência do dinheiro porque o dinheiro dava jeito. A negligência, a este nível de responsabilidade, é conivência."
Quando lhe pergunto se acredita que o actual governo de Angola pode acabar com a corrupção sistémica, Ana Gomes revela um optimismo prudente: "Isabel dos Santos é a ‘cabeça do polvo’. Qualquer poder político que quisesse divergir do anterior tinha de começar por ela. Há 56 por cento de jovens angolanos desempregados, 14 milhões de pessoas a viver abaixo do limiar da pobreza, a situação económica é dramática e o Presidente João Lourenço tinha de agir. Existem, obviamente, imensas contradições a nível do poder político, mas fui lá [a Angola], em 2018, depois deste presidente ser eleito, e respira-se. É outra coisa. Aquilo que se considerava imutável, ruiu. E isso está para além do próprio João Lourenço." O sociólogo angolano David Boio, entrevistado pelo Expresso**, exprime uma visão diferente. Em sua opinião, para romper com a herança política do ex-presidente Eduardo dos Santos, o Presidente João Lourenço terá de dar sinal "de que o fato costurado à medida de José Eduardo dos Santos não corresponde às suas medidas e aos seus gostos".
Por "fato" entenda-se uma Constituição, a de 2010, "feita à sua imagem e semelhança", a qual, segundo o sociólogo, "não apresenta os desejáveis mecanismos de checks and balances". Para reformar o sistema, consideram os analistas, seria necessário ir mais longe, aproveitando as revelações do Luanda Leaks para reformar o sistema e não apenas denunciar a corrupção. Tendo expressado a António Costa a intenção de não se candidatar a novo mandato no Parlamento Europeu – "Eu defendo a limitação de mandatos e tinha de começar por mim própria" –, Ana Gomes pediu uma licença sem vencimento à sua instituição de origem, o MNE, enquanto não chega a reforma e para poder continuar, como a própria diz, a "lançar o alerta": "Eu podia estar descansada a usufruir da vida, dos meus sete netos, que adoro, mas os conhecimentos que adquiri, as redes a que pertenço, quer de políticos, quer de jornalistas, interpelam-me e mobilizam-me politicamente. Acho que sou útil fazendo o que faço."
Embora elogie o primeiro-ministro pela capacidade de pôr em pé a "geringonça", Ana Gomes considera uma "oportunidade perdida" não se ter repetido o modelo na actual legislatura. Quanto à ideia da candidatura à Presidência da República, que o seu colega do PE e amigo, Francisco Assis, lançou em Janeiro deste ano, considerando-a mesmo "um verdadeiro imperativo categórico", mantém-se firme: "Apesar de eu fazer uma avaliação positiva da actuação do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, considero que o PS tem a obrigação de indicar um candidato que federe a esquerda e que aproveite a disputa democrática para expor as nossas ideias, o que só valoriza o próprio papel do PR. Mas o tipo de intervenção política que escolhi é a que hoje tenho. A minha capacidade de influência depende da minha liberdade. Eu não quero dever nada a ninguém e não quero ter amarras. Além disso, alguns dirigentes do PS não gostam de mim e ainda bem. E eu nunca estaria disponível para dividir o PS, como aconteceu nas últimas eleições presidenciais. Não foi bom para o PS, nem foi para o país."
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Não concebendo a reforma sem continuar a sua intervenção política, como é que Ana Gomes encara o envelhecimento? "Com naturalidade. Gosto dos meus cabelos brancos e das rugas. Só não gosto do peso que ganhei com a vida desalmada no tempo do PE. Vou aprendendo que fisicamente não tenho as capacidades de antes, mas estou a voltar a fazer exercício físico. Comprei uma bicicleta e já vou dando umas voltas." Terá, finalmente, mais tempo para o marido de um segundo casamento sólido – com outro diplomata, que foi o chefe da Casa Civil do presidente Jorge Sampaio, em 1994 –, apesar de anos a viverem a milhares de quilómetros de distância: "A receita é [manter] uma fortíssima relação que se reforça com a distância [e valendo-se da escrita porque então não havia Skype, só havia telefone e as chamadas intercontinentais eram caríssimas] e com pessoas inteligentes e tolerantes em cada ponta da relação."
Talvez sejam as palavras de Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, que melhor encerram, ainda que de forma enigmática, um vaticínio para o futuro: "Ana Gomes é uma amiga de quase 20 anos. Eu tenho muito orgulho por a ter seduzido para a política. Foi uma grande deputada no Parlamento Europeu, proposta por mim e pelos dois secretários-gerais do PS que me sucederam. E no momento em que fui miseravelmente caluniado, em 2003, a Ana foi igual a si própria: verdadeira, frontal, corajosa. Ter o ‘coração ao pé da boca’ nos momentos que vivemos ainda é mais importante do que há 20 anos. Não sei se o meu querido António Franco, seu marido e conselheiro, é suficiente para travar excessos derivados do seu sentido de serviço e de justiça. Gosto muito deles e desejo-lhes muitos anos de vida com entusiasmo, saúde e tranquilidade."
Maria Elisa Domingues escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
* O Negociador – Revelações diplomáticas sobre Timor-Leste (1997-1999), de Bárbara Reis e Fernando d’Oliveira Neves, Publicações Dom Quixote (2019).
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** Expresso, 8 de Fevereiro de 2020. David Boio é director-geral do Instituto Politécnico Sol Nascente, no Huambo.