O adeus a Maria Barroso
Eterna primeira-dama, atriz e fundadora do PS, Maria Barroso partiu com 90 anos, deixando-nos um legado cultural, político e humanitário inigualável para uma mulher do seu tempo.

Em 1943 diplomava-se em Arte Dramática e mais tarde, em 1951, licenciava-se em História e Filosofia, na Faculdade de Letras de Lisboa, onde se cruzou pela primeira vez com Mário Soares.
"A Máxima – tal como o disse quando festejava o seu 20º aniversário – tem sido uma revista que, desde o seu aparecimento, tem desempenhado um papel importante no setor da cultura. Até no reconhecimento do valor das mulheres, estimulando-as e atribuindo-lhes prémios que dão a conhecer esse valor, as suas grandes capacidades no mundo da cultura. E esse tão importante papel tem sido constante, não enfraquecendo com o tempo, muito pelo contrário, intensificando-se e contribuindo para o enriquecimento desse setor tão importante da sociedade. A persistência nessa magnífica de dar revelo ao papel da mulher no campo cultural – e não só! – tem sido uma das suas mais importantes contribuições no justo e indispensável relevo a dar-se a esse papel. Por isso, é sempre agradável pegar na revista, folheá-la e lê-la com atenção e até levando-a junto das camadas da população que a desconhecem. Não se trata de uma revista de futilidades, mas de uma revista que se impõe pelos conhecimentos e notícias que transmite e cuja leitora constitui um prazer imenso para quem a lê. Aliás, será justo destacar as ilustres figuras que não só a criaram como aquelas que, fiéis ao pensamento dessas primeiras grandes mulheres, a continuaram e continuam a impô-la a nossa admiração e grande apreço." (Maria de Jesus Barroso Soares, na Máxima nº 301, uma edição comemorativa dos 25 anos da revista).
Só não fez o curso de Direito porque o destino – e a relutância de Mário Soares – assim não o quis. Era uma mulher de ideias fixas, de aspirações inabaláveis e no rosto lia-se-lhe a vontade de que a vida fosse infungível. Maria de Jesus Barroso tinha acabado de completar 90 anos. "Sinto que estou quase a partir, que se aproxima o momento", revelou há meses, numa última entrevista ao jornal i.
Há quem olhe para si por dois prismas: como a mulher de Mário Soares ou a Maria Barroso – mas só o segundo lhe faz verdadeiramente jus. Numa só vida, incrivelmente cheia, conseguiu ser exemplar no papel de atriz, figura política, professora e poeta, além de mãe, esposa dedicada, defensora das causas humanitárias com que se foi cruzando.
Um ano depois de se licenciar em Arte Dramática estreou-se na peça de Jacinto Benavente, Aparências, sob a direção de Palmira Bastos e os aplausos não se fizeram esperar. Além de ter sido atriz na companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, foi uma das primeiras musas de Manoel de Oliveira, nos filmes Le Soulier de Satin, Amor de Perdição, Benilde ou Virgem Mãe. Os primeiros poemas disse-os ainda no Liceu Filipa de Lencastre e levou-os mais tarde aos grandes recitais do Teatro Nacional onde dava voz aos poetas do Novo Cancioneiro – que enraiveciam a polícia política que cercava as salas – ao declamar eufórica e firme o poema de Sidónio Muralha: "Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas que possam impedir a nossa caminhada, em que os poetas são os próprios versos dos poemas." Foram esses mesmos versos que lhe custaram o fim da carreira de atriz, na altura em que o Estado Novo proibia a liberdade de expressão, mas que lhe valeram a afirmação pública da personalidade firme e o caráter corajoso com que a conhecemos hoje e sempre.
Foram talvez esses traços que a conduziram inevitavelmente à esfera política. Em 1969 foi candidata a deputada pela Oposição Democrática e quatro anos depois fundava o Partido Socialista. Foi primeira-dama de Portugal uma década (de 1986 a 1996). Neste período empenhou-se em defender os valores da família, da pátria, da liberdade. Nos anos noventa criou o movimento Emergência Moçambique e impulsionou a abertura do ciclo de realizações do Ano Internacional de Luta contra o racismo, a xenofobia, o antissemitismo e a exclusão social.
Escapou à prisão e a sucessivas perseguições políticas, casou com Mário Soares preso, superou o trágico desastre de avião de um dos seus filhos, João Soares, rumou várias vezes ao continente africano para promover, vezes sem conta, a paz e a justiça. Não foi uma vida plena de felicidade, mas fez todos os seus passos valer a pena.
Maria de Jesus Simões Barros imortalizou quase um século com as suas ideias e convicções. E deixou na memória daqueles que nele viveram a recordação de uma mulher dedicada, sonhadora, admiravelmente à frente do seu tempo.
Várias vezes convidada para entregar os Prémios Máxima de Literatura e os Prémios Máxima Mulher de Negócios, Maria Barroso deu algumas entrevistas à revista Máxima que com ela sempre manteve uma afetuosa ligação e profunda admiração, não só pelo seu vínculo à arte e à escrita mas sobretudo pelo seu perfil de mulher pioneira e exemplar.
Por Rita Avelar
