Sofia Aparício: “Sou feminista, sou woke, sou todas aquelas palavras que querem tornar negativas"
De modelo icónica e atriz consagrada a voz incómoda na defesa dos direitos humanos, Sofia Aparício leva consigo a elegância de quem já pisou todas as passadeiras – e a inquietação de quem viu o estado do mundo de perto, a bordo de uma flotilha humanitária rumo a Gaza.
Ainda acorda a meio da noite, a respiração presa entre o sonho e o terror. “Acordo a achar que os guardas me estão a entrar pela cela adentro, que tenho a mira apontada à cabeça e os cães…” A memória ainda não se aquietou. Há marcas que não se veem, mas que permanecem como ecos, a lembrar que a viagem rumo a Gaza não terminou no regresso. A atriz, modelo e ativista Sofia Aparício foi uma das portuguesas a bordo da flotilha que transportava ajuda humanitária, ao lado de Mariana Mortágua e Miguel Duarte. Estiveram um mês no mar até serem intercetados pelas forças israelitas. Ficaram quatro dias presos. Em Portugal e um pouco por toda a Europa, a mobilização popular intensificava-se. Em várias cidades portuguesas, milhares de pessoas tomaram as ruas recuperando o histórico slogan “From the river to the sea, Palestine will be free” (“Desde o rio até ao mar, a Palestina será livre”).
“Não imaginei que as pessoas se mobilizassem tanto. Fico feliz, porque parece que finalmente as pessoas abriram os olhos para a real dimensão do problema.” Desde que aterrou em Lisboa, Aparício não tem parado. Quiseram-na para debates e painéis. Tem recusado. “Não sou nem comentadora nem política, nem tenho ambições nem para uma coisa nem para outra. Sou uma mera ativista pelos direitos humanos, voluntária em mais uma ação humanitária. Não tenho de ir debater nada.”
A atriz, que há muito se reformou das passerelles, nunca gostou de ser o centro das atenções. Nunca pediu palco ou luzes. “Não peço para ir à televisão. Aliás, odeio a atenção mediática. É o que me está a custar mais nisto tudo. Na verdade, para a semana vou para a minha aldeia e vou lá ficar um tempo.” Fala de Perre, uma povoação em Viana do Castelo, onde cresceu ao lado da avó Joana, mulher que lhe ensinou a gentileza e o sentido do outro. “A primeira vez que chorei na prisão foi a pensar no portão vermelho da casa de Perre, nessa avenida com a vinha por cima e o sol a fazer aquelas sombras no chão. Sou uma privilegiada. Tenho uma casa para onde voltar. Não temos noção do grau de privilégio que temos… É importante sairmos da nossa bolha.” Perre é o refúgio e o ponto de partida. Foi lá que aprendeu a olhar o mundo sem o deslumbramento da cidade. “Sempre me senti uma privilegiada, e esse facto obriga-me a equilibrar um bocadinho os pratos da balança e a olhar pelos menos privilegiados.”
Antes de se tornar uma das manequins mais icónicas dos anos 1990 e uma instituição da moda nacional, Sofia aprendeu com a avó que o olhar tem peso. E foi esse olhar que, décadas depois, a levou para uma embarcação humanitária. “Já integrei outras missões humanitárias, sou ativista pelos direitos humanos desde que me lembro de mim. É quase um instinto”, diz, ressalvando que “isso não faz de mim nem melhor nem pior pessoa do que as outras”.
Quando a contactaram para integrar a Flotilha da Liberdade, recorda, estava numa montanha no Montenegro, numa das muitas viagens que faz quando não está a trabalhar. “Pedi para pensar. Inclusivamente tinha trabalho marcado que teve de ser adiado e depois acabei por perder o trabalho porque a missão demorou muito mais tempo do que estávamos à espera.”
O passo, porém, era natural. “Uma das razões para me contactarem para fazer parte da flotilha foi o facto de eu ter uma plataforma pública em Portugal.” Aparício reconhece que há pessoas com plataformas maiores, com mais seguidores, que se traduzem em mais visibilidade. Mas a atriz carrega no corpo décadas de trabalho a colaborar com ONG portuguesas e internacionais, como a Amnistia Internacional.
Não hesitou por muito tempo. “Resolvi aceitar porque não conseguia ficar sentada no sofá sem fazer nada sabendo que está a acontecer um genocídio.” E acrescenta: “Pus nos pratos da balança – se eu não for, não vou dormir com a consciência tranquila, porque podia ter feito alguma coisa e não o fiz; se eu for e me aleijar, depois regenero-me. E por isso fui.”
A bordo, o mar não foi o mais duro. O pior veio depois, na prisão israelita. “Vi à frente dos meus olhos uma senhora de quase 80 anos que estava na minha cela e tinha a perna direita partida. A guarda perguntou-lhe o que é isso, e ela disse ‘está partida’, e a guarda pega numa porta de ferro e manda-lhe com a porta contra a perna.” O horror ainda a espanta: “Sabemos o que se passa nas prisões israelitas, como são tratados os presos palestinianos, mas a maldade surpreende-me sempre. Não consigo perceber este grau de maldade.” Nas poucas entrevistas que já deu, discorreu sobre o que passou na prisão, esses dias de horror que ainda a atormentam. À Máxima escolhe falar dos momentos de luz e exemplo de força coletiva, como o reconhecimento do Estado da Palestina pelo Governo português, que “existiu porque, juntos, somos mais fortes”, acredita. “A força popular é a única coisa que pode obrigar os governantes a agir de forma positiva. O poder começa e acaba no povo, isto não é direita nem esquerda, somos nós que podemos impedir quem tem poder de parar de nos oprimir. Quantos mais formos, maior é a nossa força.” Mas o reconhecimento não chega, alerta. “É preciso tomar medidas concretas e o Estado português devia, ao abrigo da lei internacional, tomar medidas concretas para acabar com o genocídio. Os Estados europeus não o fizeram e o Estado português não o fez”, denuncia.
A 5 de outubro, foi recebida por centenas de pessoas no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. A comoção contrastava com as críticas – de protagonismo, de “querer atenção”. “Em relação à Mariana [Mortágua], era expectável, acho que em relação a mim também, se calhar porque há misoginia, sim, o patriarcado não aguenta mulheres independentes, corajosas e que decidem fazer coisas.” Sofia desvaloriza, contudo, as acusações. “A mim diretamente não atinge. Tenho a certeza da pessoa que sou. A coisa que mais me custa é a atenção mediática, mas não tenho de provar nada a ninguém.” Ela que nunca se associou a um partido vê-se agora colada ao Bloco de Esquerda. "Não acho que seja um insulto associar-me ao Bloco, apesar de eu já ter votado em muitos outros partidos da nossa democracia. Parece que ser de esquerda é teres uma visão filosófica da vida em que a solidariedade prevalece ao egoísmo. Sim, acho que a vida das pessoas é mais importante do que o dinheiro. Acho que o bem-estar do planeta é muito mais importante do que os ganhos de qualquer empresa. Se isso é ser de esquerda, serei de esquerda. Não é porque sou solidária com os que estão aqui ao meu lado que o meu coração não é suficientemente grande para chegar ao outro lado do mundo. A empatia não pode ter cor política nem nacionalidade.”
Críticas à parte, não poupa palavras duras ao Governo português. “A pessoa que desempenha as funções de ministro da Defesa pôs a minha vida em risco ao dizer que nós éramos extremistas. Reafirmo: ele não tem condições para ser ministro da Defesa. É uma pasta demasiado sensível para um homenzinho daqueles. Em relação ao ministro dos Negócios Estrangeiros… Como é que ele se atreve a dizer... Eu fui vítima de dois crimes, sequestro e interceção da embarcação onde seguia em águas internacionais. Quem comete crimes é criminoso. O nosso ministro dos Negócios Estrangeiros garantiu que os criminosos agiram 'com profissionalismo'. O que é que isto quer dizer?”
O que mais a incomoda, sublinha, é a indiferença. “Gaza está ocupada por Israel e continua o cerco. Israel decide a quantidade e a qualidade de água que entra, a comida, os materiais de construção. Controla também o resto do mundo – pelo menos a Europa, e isso vê-se nas atitudes dos políticos. O que o ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal fez foi vergar-se e fazer uma vénia a Israel por nos ter sequestrado.”
A atriz desvaloriza a questão de ter de pagar a viagem, um tópico que tem feito correr tinta na imprensa nacional. Ao contrário do governo espanhol, que custeou o regresso dos ativistas que iam na flotilha, os ativistas portugueses foram surpreendidos com uma dívida para saldar. “Vou pagar porque sou de boas contas. Não é a mim que andam a investigar a origem do dinheiro de umas férias ou do dinheiro com que paguei a minha casa. Demorei 25 anos a pagar a minha casa com o dinheiro do meu trabalho. Sou de boas contas, vou pagar”, sorri.
Aos 55 anos, não vê o seu ativismo como carreira nem como palco. “Viver é um ato político. Desde a roupa que tu escolhes comprar à marca que boicotas. Se és vegetariana ou carnívora. Tudo são escolhas políticas. Não posso fugir do lado político que tem a ação humanitária, mas não tenho interesse nenhum em envolver-me mais na política. Não tenho qualquer tipo de ambições políticas. Vejo-me como uma cidadã comum, ativista pelos direitos humanos.”
A vida artística, essa, nunca foi neutra, desde que se estreou no Teatro Experimental de Cascais, pela mão de Carlos Avilez, com A Dama das Camélias, de Dumas Filho, em 1997. Foi oscilando por períodos mais ou menos vibrantes de trabalho, mas não tem dúvidas: “O meu posicionamento sempre me prejudicou o trabalho.” Porquê? Responde sem pudor: “Porque não tenho papas na língua, porque digo o que penso e aquilo em que acredito. Sou uma pessoa bastante discreta e calada, mas não me calo perante a injustiça. Sou feminista, sou woke, sou todas aquelas palavras que são positivas e que querem tornar negativas. E os clientes preferem mulheres mais doces e fáceis de engolir do que eu.” Não mede sucesso em dinheiro nem aplausos. “Para mim, o sucesso mede-se pela quantidade de vidas que melhoraste ao longo da vida.”
Agora, quer voltar a Perre. “Ainda não comecei a pensar no futuro da minha carreira. Gosto muito de ser atriz, é um dos privilégios que tenho na vida.” Gosta de representar, sim, mas recusa trair-se. “Não estou disposta a trair-me para ter trabalho. Isso não vai acontecer. Ficar calada seria uma traição.”
Perre é o destino e o abrigo. O lugar onde começou tudo. O pai era angolano, aliás, os pais viviam em Angola quando ela nasceu, mas foi em Viana que passou parte da infância, entre vinhas e sombras de sol. “Quando começou a guerra, eu tinha quatro anos e os meus pais enviaram-me para casa da minha avó, em Perre. Vivi ali até aos oito anos.” A avó Joana, “a pessoa mais solidária” que conheceu, ensinou-lhe a medida da generosidade. Hoje, é dela que Sofia se lembra quando fala do futuro. “Gostava de viver descansada, ter um jardim enorme e tratar das minhas plantas. Isso era o que eu gostava de fazer. Mas o mundo não está em condições para eu fazer isso. As pessoas precisam de nós. Há 100 conflitos armados no mundo. Não posso meter a cabeça na areia e fingir que isto não está a acontecer.” Olha para o mundo “com zero esperança, mas zero vontade de desistir”. Chama-lhe um “otimismo desconfiado”. E sorri, como quem sabe que o privilégio maior é continuar a acreditar.
Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2025.
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