Sem medo do Poder
Enérgicas, determinadas e com um enorme sentido de serviço aos outros. É este o denominador comum de cinco das mais poderosas mulheres portuguesas. Elas contam à Máxima como chegaram ao poder e o que pretendem fazer com ele.

Joana Marques Vidal, Procuradora-Geral da República
“O poder nunca me deslumbrou”
“Nunca sacralizei o poder. Sempre vivi com a noção perfeita de que é precário, uma coisa efémera. Hoje está-se num cargo de poder, amanhã não, e não é por aí que devemos reger a nossa vida. Aprendi-o com os meus pais e é uma maneira de estar na vida. Não só não me deslumbro como até as obrigações decorrentes deste cargo me confrangem um pouco. Ainda me estou a habituar a ter seguranças, por exemplo, não pelas pessoas em si, que são extraordinárias, mas porque sempre fui muito independente.
'O PGR tem poder? Claro que tem. Mas para mim o poder consiste na possibilidade de mudança'
O Procurador-Geral da República tem poder? Claro que tem. Mas para mim o poder consiste na possibilidade de mudança. O Ministério Público é uma magistratura de iniciativa, que promove o exercício dos direitos dos cidadãos e principalmente das pessoas mais vulneráveis, além do exercício da ação penal. Quero trabalhar para que, no concreto, seja cada vez mais assim. Quero fazer mudanças, apesar do momento complicado em que vivemos e das limitações orçamentais. Não é um poder fácil de exercer porque as pessoas, às vezes, têm a ideia de que o Ministério Público pode resolver tudo, e nós só temos as competências que estão na lei. Mas podemos ser mais pró-ativos, podemos promover e facilitar os percursos que as pessoas têm de tomar para resolver os seus problemas. Não basta despachar o processo…
Dar poder aos que não têm poder, que é a nossa missão, passa, por exemplo, pelos direitos das crianças, que são uma luta antiga, minha e de muita gente. A situação melhorou, mas ainda estamos contaminados por uma visão assistencialista. É um facto que quando se definem políticas, habitualmente a questão das crianças não surge como uma prioridade. Falta-nos uma estratégia nacional. Quanto às crianças nos tribunais, continuo a pensar que a formação especializada devia ser um pressuposto e uma condição da colocação dos magistrados nos Tribunais de Família e Menores, aliás, bem como nos outros. O que obriga, necessariamente, à mudança da forma como se faz o respetivo concurso.
Qual é a sensação de ser a primeira Procuradora-Geral da República? Não penso muito nisso, se quer saber a verdade. Ser mulher nunca afetou a minha carreira, provavelmente porque como não vejo nenhum poder como sagrado, necessariamente nunca vi assim o poder masculino. Mas é verdade que as mulheres, para serem reconhecidas, continuam a precisar de trabalhar muito mais, a provar mais. E quando uma mulher está num lugar de destaque e falha é muito mais criticada e de um modo mais humilhante do que é um homem incompetente que estivesse no mesmo lugar. Tenho também consciência de que a vida das instituições ainda está estruturada de uma forma que torna a vida das mulheres difícil, sobretudo das que são mães – o facto de não ter filhos deu-me, provavelmente, uma disponibilidade maior. Mas também isso está a mudar.
Quer voltar à questão da minha família? Não gosto de falar de mim, mas reconheço que o facto de ter cinco irmãos, quatro deles rapazes, ajudou-me, com certeza, a perceber que o poder é negociado, embora eu seja a mais velha [sorriso].”
Assunção Esteves, Presidente da Assembleia da República
“Dediquei a minha eleição a todas as mulheres”
“Poder é pura e simplesmente serviço. E o poder político é uma intervenção no mundo, uma maneira de multiplicar o bem que podemos fazer aos outros. Porque a política tem um efeito multiplicador do serviço. São medidas com autoridade, que se destinam a grandes massas da população, a grandes espaços de vida. A política é a melhor das formas de voluntariado. Se não fosse assim, pode estar certa de que não estaria aqui, mas estou porque tenho a esperança de ajudar a semear a capacidade de acreditar.
'Ser a primeira juíza no Tribunal Constitucional teve em mim um impacto enorme. Maior ainda do que ser a primeira presidente da AR'
Deixe-me explicar-lhe. Nos tempos de hoje, não vale a pena estar na política, fazer política, se não tivermos um sentido moral muito profundo, um interesse em fazer bem aos outros porque hoje a um político é-lhe imputado tudo o que está mal no País. Sim, às vezes com razão, porque as lideranças ao longo dos tempos não conseguiram uma composição mais equilibrada da sociedade, um mundo mais justo e mais igual, mas muitas vezes carregando-nos com culpas que não temos. Culpas exacerbadas, ainda por cima pela situação de crise em que vivemos.
Se a nomeação como primeira mulher Presidente da Assembleia da República teve um grande impacto em mim? Sabe, o momento em que essa sensação foi mais forte foi quando fui a primeira juíza no Tribunal Constitucional, em 1989. Tinha 33 anos na altura, e foi um privilégio poder usar o verbo no feminino no ato de posse. Mas, tanto dessa vez como desta, dediquei a minha eleição a todas as mulheres, sobretudo às pobres e oprimidas. Sinto que, de alguma maneira, o facto de ter chegado a estes lugares é uma forma de resgatar a injustiça sofrida por muitas mulheres que não conhecemos, mulheres anónimas. É uma vingança silenciosa das que estão à espera de justiça, e ainda há muitas, não se iluda. Mas temos de nos congratular com as vitórias, e quando olho para o hemiciclo e vejo tantas mulheres, e mais do que isso, mulheres tão extraordinárias, que deixam marca, que fazem a diferença, fico contente. Já não é possível partir do pressuposto de que as mulheres estão mal representadas. E ainda bem porque elas trazem consigo uma forma muito própria de ver os problemas e não há dúvida de que completam a visão que os homens têm do mundo. Não, não o digo por ser politicamente correto, acredite. Um mundo dirigido só por homens era mais pobre.
Se me deixo deslumbrar pelas honras do lugar? Sim, eu sei que é o segundo lugar na hierarquia do Estado [risos]. Só os néscios ficam impressionados com estas coisas. Honrada, sim, muito, mas deslumbrada, nem um bocadinho. A política como poder de domínio do mais forte pelo mais fraco deve ser obviamente condenada, mas alimento a certeza de que o poder individual está a ser substituído pelo poder pelo mérito, do poder em rede. Só me revejo nessa forma de poder. Porque acho que me define este gosto de estar neste mundo, como se tivesse acabado de chegar de outro – um olhar de fora, que não se deslumbra, que não precisa da vaidade. Não sendo religiosa, ao longo da vida adquiri uma forma quase religiosa, entre aspas, note, de encarar a existência: seria feliz num buraco e mesmo assim amaria a vida. É por isso que suporto a vida da política.
PS: “Sabe o que é que gostava muito de ainda fazer? Tirar um curso de Psicologia e ser crítica de cinema. Ainda vai acontecer.”
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Catarina Martins, Coordenadora Nacional do Bloco de Esquerda
“Não podemos negar as barreiras no acesso ao poder ”
“O meu percurso político até à coordenação nacional do Bloco de Esquerda (BE) não foi o mais ortodoxo, o que só prova que, ao contrário do que se diz, os partidos não são todos iguais. Aderi ao BE há três anos, mas sempre fiz política porque a política tem a ver com termos voz na vida coletiva e isso tenho há muito. Aceitar a coordenação nacional foi um passo complicado, mas mais complicado ainda tinha sido concordar em ser candidata à Assembleia da República. Complicado porque vivia no Porto, com duas filhas, e obrigava-me a mudar muita coisa, mas também porque gostava muito da minha profissão. Dirigia uma companhia de teatro, era atriz, encenava e escrevia e, para mim, o trabalho criativo é muito importante. Não sentia vontade nenhuma de o abandonar. E mais: a minha forma de intervenção política era também artística. Mas depois de pensar bastante achei que sim, que era importante que houvesse na representação política institucional vozes que claramente viessem da Cultura e de ativismos que normalmente não chegam aqui.
'Os meus pais são feministas, portanto há questões de que só me fui apercebendo à medida que ia crescendo'
Pessoalmente, tenho bem a noção de que o facto de ser mulher tem custos e sempre teve custos. Venho de um meio, a criação artística, em que os criadores são homens. As mulheres podem ser boas intérpretes, excelentes produtoras, mas o criador é o homem. Na política, os ouvidos com que nos ouvem, e os olhos com que nos leem, têm maioritariamente um preconceito que é preciso ultrapassar... e é para isso que cá estamos!
As mulheres que estão em lugares de liderança afirmam, muitas vezes, que não enfrentaram barreiras para ali chegar, o que é um discurso perigoso e que não corresponde à realidade. Quando negam estes obstáculos, fazem desta questão um não assunto e tem de ser assunto. No Bloco, sempre houve quotas porque assumimos que é preciso combater uma desigualdade de representação entre os dois géneros, e é também por isso que a coordenação do partido está entregue a um homem e a uma mulher, de idades diferentes, e com percursos políticos diferentes.
A pergunta de como é que as mulheres conjugam os filhos com o trabalho é pertinente, mas era bom que também nos preocupássemos em saber como é que os homens o fazem porque os homens também têm de ter tempo para os filhos... Os meus pais são feministas, portanto há questões de que só me fui apercebendo à medida que ia crescendo porque em minha casa nunca se me puseram assim. Em todo o caso, devo dizer que a relação que as minhas filhas têm com o pai delas é diferente da que tive com o meu pai, sendo certo que o meu pai é também um avô muito presente. Mas tenho o cuidado, nós temos, eu e o pai delas, de que a igualdade seja um tema discutido em casa porque não vivemos numa redoma. Um dos exemplos que costumo dar são os desenhos animados do Phineas e Ferb, extraordinários porque mostram a capacidade de imaginação, a alteração das regras no bom sentido, mas, depois, os rapazes são cientistas e desportistas e as raparigas suspiram por um namorado... Mas as minhas filhas sabem qual é o único defeito do Phineas e do Ferb! [Risos] Se as pessoas me reconhecem? Quando reconhecem são muito simpáticas. Talvez gostem de ser representadas por alguém que não corresponde ao homem de fato, com um discurso estereotipado. Aí, ser mulher talvez seja uma vantagem.”
Isabel Vaz, Administradora do Grupo Espírito Santo Saúde
“O machismo prejudica-os mais a eles do que a nós”
“Sou responsável por oito mil colaboradores, cheios de ideias e sonhos, e o poder permite-me transformar essas ideias e sonhos num projeto coerente. Ter poder é a possibilidade de tomar decisões no sentido de construir coisas boas que impactem de forma positiva a vida dos outros, é servir. O meu pai contava-me, muitas vezes, a Parábola dos Talentos: acredito que Deus nos exige na medida dos talentos que nos deu. As pessoas que estão em determinadas posições, sobretudo neste período difícil, têm mais responsabilidade em não defraudar as expectativas que sobre elas recaem. Não vou dizer que é um fardo, mas é, de facto, uma enorme responsabilidade.
'Irrequieta? Ainda bem, por isso é que há cada vez mais ‘irrequietos’ em posição de liderança porque não se deixam ficar'
Trabalho na área da saúde, e sim, é verdade que a saúde é um setor onde o poder de acesso a cuidados é profundamente desigual. O SNS é importantíssimo e em termos absolutos estamos muito melhor do que há 30 anos, mas quem tem dinheiro acede mais depressa a melhores serviços, isso é indiscutível. Mas também é verdade que temos poder sobre a nossa saúde porque muitas das doenças deste século resultam dos nossos estilos de vida, de pouco exercício, de uma alimentação desequilibrada – mas nem sempre gostamos que nos falem nessa responsabilidade.
Hoje, os cuidados de saúde não são um trabalho individual, trabalha-se em equipa. O poder não está na mão de uma só pessoa, nem mesmo na do médico, e depende mais da persuasão e da convicção do que do autoritarismo. É um desafio de liderança.
Aliás, o mundo em geral é um mundo onde a inteligência emocional tem uma importância cada vez maior. Se é uma qualidade mais feminina ou masculina? Não gosto de generalizar porque já conheci homens de uma sensibilidade extraordinária e mulheres de uma dureza enorme. O que sei é que a capacidade de ouvir e a empatia são as características que definem os grandes líderes. Sim, é verdade, talvez as mulheres tenham exercitado estas competências durante mais gerações. Treinaram com os filhos, os maridos, as sogras...
Pessoalmente, tive um percurso profissional feliz. Trabalhei na McKinsey, onde existe uma meritocracia. E, na Espírito Santo Saúde, pude criar a minha equipa.
É claro que encontro ainda, de vez em quando, homens que me tratam de forma paternalista, mas acho que cabe às mulheres não se deixarem inferiorizar. Quando acho que tenho razão, mantenho que tenho razão. É claro que já me disseram que sou refilona, ou que ‘a menina tem ginete’, porque às vezes tentam denegrir assim quem não se conforma, quem se recusa a aceitar que a economia seja uma questão de favores e corredores. Irrequieta? Ainda bem, por isso é que há cada vez mais ‘irrequietos’ em posição de liderança porque não se deixam ficar. Digo sempre à minha equipa: ‘A nossa maior força é que temos obra feita.’
Mas tudo isto é uma questão que a nova geração já ultrapassou. É uma geração com ‘pelo na venta’, são os mais preparados de sempre. Pense numa coisa: as nossas mães não podiam sair do País sem a autorização dos nossos pais e nós já temos dificuldade em acreditar que foi assim...
É ótimo ser mulher. Temos muito mais escolhas do que os homens. Mais escolhas como? O poder de trabalhar ou ficar em casa. Ou de trabalhar e ficar em casa. O machismo prejudica-os muito mais a eles do que a nós.
É claro que conciliar família e trabalho não é fácil. Mas sempre envolvi os meus filhos naquilo que fiz, sempre lhes disse que o trabalho é um serviço aos outros. Agora ele tem 19 anos e ela 15 e ambos têm muita noção do serviço, o que me deixa muito orgulhosa. E o mais importante é que nunca perdi a noção das prioridades. Os meus filhos são a minha prioridade número um.
Trabalho muitas, muitas horas por dia, é verdade, mas sou dona do meu tempo e essa flexibilidade faz toda a diferença. Na McKinsey, acho que era muito exigente comigo mesma, menos segura, mas hoje sou capaz de dizer: ‘Amanhã, não há reunião do Conselho de Administração porque tenho a festa da escola da minha filha.’ E os meus colegas, que são homens, fazem o mesmo porque hoje os homens querem estar com os filhos, fazer parte da vida deles. E sabe que mais? Não se passa nada! O mundo não deixa de rodar por causa disso. Foi essa a minha grande descoberta.”
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Judite de Sousa, Jornalista
“Escolher é poder”
“É claro que escolher é poder. E, no jornalismo, escolher faz parte das regras do jogo, entrevistar a pessoa A e não a B, dar determinada notícia e não dar outra, é obviamente uma forma de poder. Mas nas Ciências da Comunicação há um conceito muito importante, o conceito de Gatekeeping, somos guardiões de uma porta que se abre e se fecha. É um poder editorial que corresponde à inevitabilidade de fazer opções, que obviamente são também feitas em função do perfil editorial de cada meio, e da vontade de criar valor para as empresas para quem trabalho... Pressionada? Somos sempre [sorriso], mas sou muito objetiva. Muito focada naquilo que é a essência do meu trabalho, a possibilidade de informar com seriedade, respeitando a verdade dos factos, e assim contribuir para produzir uma informação de qualidade que ajude as pessoas a pensar melhor os acontecimentos e a serem cidadãos livres.
'Sou muito focada naquilo que é a essência do meu trabalho, a possibilidade de informar com seriedade, respeitando a verdade dos factos'
Há quem diga que pelo desgaste do poder político e judicial, o jornalismo ganhou um poder excessivo, mas não concordo, pelo contrário sinto que o jornalismo é, apesar de tudo, uma âncora, numa altura em que há realmente um grande descrédito dos outros dois poderes, em resultado de promessas não cumpridas do poder político, de indefinições, indiscrições e inércias do poder judicial.
E julgo que as pessoas reconhecem que exercemos bem esse poder, aliás, os últimos estudos mostram que as pessoas entre as diversas classes profissionais valorizam positivamente o trabalho dos jornalistas. Mais: quando se lhes pergunta se acreditam nos jornalistas, as respostas têm sido maioritariamente positivas. E os espectadores, os leitores, em Portugal, são muito adultos, muito racionais na forma como olham para os diferentes canais de televisão, diferentes jornais, diferentes rádios. Hoje, as pessoas têm cerca de duas centenas de canais de televisão, o que quer dizer que há uma oferta ampla e que as escolhas são feitas em consciência – veem o que querem, quando querem, têm poder.
E voltamos ao poder. Obviamente que identificam determinados rostos com os valores que para elas são essenciais, como a credibilidade, a honestidade, a segurança, a capacidade de reagir de uma forma certa quando se trata de um improviso... Eu acho que as pessoas são muito maduras na forma como olham os profissionais da comunicação social.
Quanto a ser mulher neste mundo? Sinceramente, nunca experimentei qualquer diferença de género, a não ser uma... em termos de remuneração! Numa dada altura da carreira, tinha tanto trabalho como colegas meus, tantos resultados como eles, tanta notoriedade como eles, mas ganhava menos. E a única explicação que encontro para isso é que, em Portugal, ainda se diferencia o trabalho de um homem e de uma mulher a nível salarial. Mas se esta é uma disparidade grave, que persiste, sinto que já ultrapassamos o conflito entre o trabalho e a vida pessoal. O mundo exige de nós um tal pragmatismo, que temos que ser capazes de investir na nossa vida profissional, até porque é ali que também reside a nossa felicidade pessoal, encontrando espaço para os afetos. E somos capazes de o fazer.”
