Histórias de Amor Moderno: “Eu era a mais gira e a mais cobiçada, e não o digo com orgulho ou vaidade, limito-me a constatar um facto”
“Eu era apenas um facto, uma inevitabilidade, um elemento necessário num pacote que ele aceitara ao desejar a minha irmã.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

A minha irmã Mafalda conseguia irritar-me como ninguém e eu nunca gostei de ninguém como gostei dela. É a minha irmã mais velha, e foi sempre a minha melhor amiga, desde a infância até à adolescência. As nossas idades são muito próximas, não chegamos a ter dois anos de diferença. Quando nasceu a Diana, nossa irmãzinha, sete anos mais nova do que eu, já a minha parceria com a Mafalda estava estabelecida em termos inabaláveis: para o bem e para o mal, estávamos juntas. Se entre nós resolvíamos desavenças no limiar da selvageria, perante as ameaças exteriores fazíamos equipa e tornávamo-nos dupla inseparável e temível.
Como amiúde sucede entre irmãos, tínhamos personalidades diferentes, mas conjugáveis, embora seja difícil estabelecer um estereótipo a partir da forma de estar e de agir de cada uma de nós. Éramos muito sintonizadas e protetoras em relação à minha irmã Diana, por exemplo. Nesse aspeto éramos absolutamente semelhantes, tratávamo-la como coqueluche, a nossa pequena boneca humana, a benjamim da trilogia de sangue, uma bebezinha tão perfeita e graciosa que nos deixava embevecidas com a mesma intensidade. Já em relação à escola, às amizades com outras raparigas - que eram raras e difíceis, inevitavelmente obrigadas a uma passagem pelo crivo impiedoso da irmã não-preponente - ou aos rapazes, eu e a Mafalda éramos muito distintas. Eu era a mais gira e a mais cobiçada, e não o digo com orgulho ou vaidade, limito-me a constatar um facto, que partilho: era assim. A Mafalda usava outros atributos, também valiosos. Era destemida e desbocada, inteligente e mordaz.

Os nossos gostos, embora pontualmente distintos, configuravam aquilo a que podemos chamar bom-gosto. E, embora na altura não se usasse a expressão "influencer" para designar aqueles que têm peso nas tendências que determinadas pessoas ou grupos acabam por seguir na escola, a verdade é que nós já exercíamos a atividade de "influencing" ainda antes de esta existir e de ser consagrada no vocabulário. E mais: exercíamos, sabíamos que o fazíamos e tínhamos gosto em fazê-lo. Os primeiros All Star da escola? (vantagens de crescer na província.) Comprados pela Mafalda (os meus foram os segundos). O primeiro Swatch do ciclo preparatório? Meu, depois de acompanhar o meu pai numa ida à Baixa de Lisboa, onde trabalhava o contabilista dele ("pai, mas eu queria, é tão giro, pai, pai, pai" - uns olhos claros de querubim, uma doçura de filhota companheirinha e uma promessa de "claro que sim, paizinho, eu assim aprendo a ver as horas num relógio de ponteiros" bastaram para que não resistisse, "está bem, escolhe então o padrão que preferes").
À medida que crescíamos, eu e a Mafalda íamos criando entre nós algum espaço. Falo de zonas de exclusividade de cada uma. Não eram bem perímetros de segurança entre nós. Eram mais territórios de acesso não partilhado. Ela, com a sua força natural, a sua personalidade inspiradora, foi-se tornando ícone rebelde entre as pessoas mais ousadas, vanguardistas e revolucionárias do liceu; eu, de espírito mais reservado, mas afortunada pela estampa física, transformava-me a cada trimestre na miúda mais desejada de toda a escola. Estas diferenças de postura não nos afastaram exatamente uma da outra; o que aconteceu foi que nos aproximaram, cada uma, de grupos de pessoas distintas, que raramente participavam de um e de outro grupo de pessoas.
As primeiras Doc Martens do liceu? As da Mafalda e as minhas. (Comprámos ao mesmo tempo, quando fomos com a mãe e com a Diana fazer um passeio cultural por Lisboa, com paragens no CCB e na Gulbenkian, durante o qual a mãe aproveitou para dissertar longamente acerca dos "malefícios da pós-modernidade na destruição do cânone na arte contemporânea", do que resultou, segundo a mesma tese, "obra quase irrelevante, uns poucos, muito poucos exemplos de criação válida nas artes plásticas portuguesas"; foram esses "muito poucos exemplos" que pudemos contemplar durante essa nossa incursão à capital, que teve como finalidade cultivar-nos um bocadinho mais, porque para a mãe desconhecer a arte era "desconhecer a essência humana".)
Luciano. O nome não era comum entre a nossa geração de pedros, joões, nunos, andrés e ricardos, em que começavam a despontar os primeiros fábios e rúbens. Luciano era mais do que um nome, era uma afirmação, um posicionamento. Lembro-me com muita clareza da compra das Doc Martens porque, na segunda-feira seguinte à expedição cultural a Lisboa, o Luciano chegou ao pé de nós e disse "uau, Doc Martens". E sorriu. Para a minha irmã. E eu, a gira, eu, a linda, a mais linda de todas, eu, a preferida, a miss escola, fiquei ao fundo daquele triângulo, como o vértice mais distante, na ponta da hipotenusa e do cateto mais longo, a ver de longe uma nova equação a desenhar-se.
A Mafalda começou a levar o Luciano lá a casa. Os meus pais, sempre muito liberais, "não queremos que saiam às escondidas", "não queremos que namorem às escondidas", "não queremos que fumem às escondidas". O problema para eles era que fizéssemos coisas "às escondidas", então a casa tornava-se um espaço de partilha e de ensinamentos - "o fumo do cigarro entra-nos na garganta a mais de 500 graus Celsius", "o corpo humano necessita de três semanas para se regenerar depois uma grande bebedeira", "a embalagem do preservativo nunca se abre com os dentes" - capaz de causar desconforto, especialmente quando tínhamos visitas.
O Luciano, contudo, tinha uma atitude confiante, como se fosse alguém mais velho, capaz de aceitar todas aquelas notas de sabedoria, anuindo e concordando, como se dissesse "exatamente, é isso mesmo". "Sabe pôr um preservativo, Luciano?", perguntou a mãe numa dessas visitas com direito a sessão de esclarecimento. E ele, ainda que completamente encurralado, sem hesitação, sorriu e saiu por cima, "eu sou um aluno de dezoitos a Biologia, mal de mim se não soubesse, Carolina" - era assim que ele tratava a mãe, sem "dona", sem reverência excessiva, nada, "Carolina", como se ela nem fosse mãe de ninguém.
E eu, diante de tudo isto, sentia-me cada vez mais fascinada por aquele rapaz, em quem tudo o que seria normal e corrente em qualquer outro seu semelhante se tornava especial, diferente, requintado. Um blusão de ganga, uma t-shirt estampada, umas calças rasgadas, umas botas de cabedal, uma camisa de ganga, qualquer ingrediente nele se tornava um adorno de estilo, com significado, com mensagem, com sentido. Por algum motivo que nunca consegui decifrar, o Luciano não interagia muito comigo. Era quase como se eu não existisse, ou se a minha presença não lhe importasse, de todo. Eu era apenas um facto, uma inevitabilidade, um elemento necessário num pacote que ele aceitara ao desejar a minha irmã. E isso doía-me. E doía em crescendo, na proporção em que o meu deslumbramento por ele ia aumentando, até se transformar inevitavelmente em paixão. Uma paixão de queimar entranhas.
Vivi sentimentos para os quais a vida nunca me preparara até então. Sempre obtivera o que desejara. Com os rapazes, nem precisava de reparar neles, a seleção natural costumava encarregar-se de pôr diante de mim aqueles que eram mais interessantes e, então sim, eu tratava de escolher o que mais me agradasse. A Mafalda, por seu lado, não me lembro de ter tido um namorado, nunca, até conhecer o Luciano. E logo o Luciano seria aquele por quem me havia de apaixonar sem receber sequer um olhar de volta.
O meu comportamento entrou numa espiral de caos. Em casa, se o Luciano estava, não conseguia cruzar-me com a minha irmã - e o Luciano estava quase sempre. Se entravam, eu ou saía ou me fechava no quarto. No liceu, passei a evitar a Mafalda, que, de resto, passava o tempo inteiramente dedicada ao Luciano, como se estivessem atados um ao outro, ou colados com uma substância viscosa qualquer, talvez fosse saliva seca, já que se babavam sem se cansarem de tanto beijo. Isolei-me. Nenhum outro rapaz me interessava. E o meu isolamento tornou-me desinteressante aos olhos desses rapazes.
Quando a minha irmã saiu de casa para ir estudar para Lisboa, para a faculdade, a nossa relação não era melhor do que a de vizinhas que se cumprimentam por hábito, todas as manhãs, quando se cruzam na rua. "Felicidades", disse-lhe eu, e ela à porta, mochila às costas, mala de viagem pousada, a olhar para mim, com um ar triste. Talvez estivesse desapontada comigo. Subi para o meu quarto, de novo. E fiquei lá a digerir a mágoa da minha paixão falhada.
Muitos anos mais tarde, uma notificação de mensagem no Instagram. "Olá, miúda. Como é que tu estás? Há quantos anos não nos vemos. Parece que foi noutra vida." Era o Luciano. Mas o Luciano era de outra vida. Como um fantasma, uma assombração. Peguei no telefone e liguei para a Mafalda.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
