Fartos de ser zen?
E se nos esquecêssemos de “desfrutar” da existência e simplesmente a vivêssemos?

Somos forçados a constatar que tudo se torna cada vez mais positivamente correto. Este conceito de felicidade obrigatória, tão artificial como exponencial, conduz-nos a uma overdose de zenitude. E se nos esquecêssemos de "desfrutar" da existência e simplesmente a vivêssemos? Todas nós procuramos progredir no caminho da sabedoria. Confessamos até ter, ao princípio, ficado encantadas por receber a daily feel good news matinal do clube de yoga requintado onde se tenta praticar a posição do bebé feliz, bem necessária antes de uma dura jornada de trabalho… No entanto, ler, assim que saltamos da cama que dar abracinhos a tudo o que mexe é a chave da serenidade tem precisamente o efeito contrário: uma grande irritação! E o que dizer quando, uma outra manhã, sua santidade Sri Ravi Shankar nos aconselha a tentar sorrir quatrocentas vezes por dia como quando éramos bebés? É demais, passamo-nos!
"(...) até mesmo à publicidade da Coca-Cola ‘a felicidade é sempre a resposta’, temos
de confessar que estamos à beira de
uma overdose de parvoíce."
Longe de mim criticar aqueles ou aquelas que preferem ler um post de Matthieu Ricard, monge budista, a uma enésima interpretação da tendência denim por uma Instagirl com uns Stan Smith brancos. Muito embora, dito isto, se possa igualmente sentir "a alegria, o contentamento, a gratidão, o encantamento, o entusiasmo, a inspiração e o amor" com um sublime conjunto Chloé…
É natural que a tirania do ‘filgud', essa obsessão absoluta do momento, comece a despertar o nosso lado obscuro. O conceito de se "sentir bem" é, obviamente, atraente, pena é que pareça eternamente retirado das águas mornas da zenitude obrigatória ou submerso no marshmallowda benevolência permanente. Ah, ser benevolente para consigo próprio, quem diria até que ponto este mantra abundantemente usado acaba por se tornar muito pouco benevolente para com os outros… Tendo já sobrevivido sucessivamente ao Dia Mundial da Felicidade (20 de março), decretado pela ONU, e à Primavera do Otimismo (uma espécie de congresso cheio de boas intenções) no dia seguinte, e até mesmo à publicidade da Coca-Cola ‘a felicidade é sempre a resposta’, temos de confessar que estamos à beira de uma overdose de parvoíce. Dançar que nem loucas pondo o som mais alto, permitirmo-nos um jantar não vegetariano em frente da televisão a ver um velho filme de Judd Apatow ou dar gargalhadas a ler um autor anglo-saxónico mauzinho (aconselho-vos o livro recente de Sam Lipsyte, The Ask) pode também ser uma ideia algo pessoal do ‘filgud'. Mas claro que não é tão positivamente correta.
DESCONEXÃO
Afinal, o que é o ‘filgud' 2015? Se resumirmos, é criarmos uma espécie de spa no espírito onde nos esforçamos por desligar das ignomínias da vida moderna, loucamente materialista, ultrajantemente digital, reencontrando o sentido da verdadeira felicidade e a força das emoções positivas. Depois do lifestyle, o mindstyle… Não é fácil? Calma, temos imensas ajudas para percorrer este caminho.
a chave da serenidade tem precisamente
o efeito contrário: uma grande irritação!"
Por exemplo, não se passa um minuto, ou quase, sem que surja uma nova aplicação que nos propõe "brilhar diariamente" graças a sessões express de meditação em plena consciência (Zenfie, a mais recente, depois de Petit Bam-Bou, em abril). Além de um mercado editorial florescente (neste momento, tem de se ler Delivering Happiness, de Tony Hsieh), temos também cada vez mais publicações especializadas, como a Happinez ou a recentíssima Psychologie Positive.
EXPLORAÇÃO
Como se isso não bastasse, uma vez concluído o livro de mandalas para colorir comprado num dia de perturbação, podemos também assistir uma vez por mês a cafés happylab, um conceito que imita os cafés philo (a comparação fica-se por aí…) e inventado por uma associação que procura "defender a ideia da felicidade no sentido nobre da palavra", um belo e vasto programa. Ou ir para o Seymour+, em Paris, 230 metros quadrados organizados num percurso que estimula a exploração do inconsciente e da criatividade. É também de bom-tom inscrever-se na School of Life de Paris (para "Como perceber o seu potencial" ou "Ter sucesso na vida" e outros assuntos fáceis de despachar em duas horas) ou na carta informativa da Fabrique Spinoza, o primeiro "Think Tank da felicidade do indivíduo".
Estas propostas para ocuparmos as nossas noites ou os nossos fins de semana de forma útil surgem frequentemente de amigos proselitistas como são todos os novos convertidos. Procuram que partilhemos da revelação deles, é humano. Mas em contrapartida torna-se francamente desumano quando eles insistem em nos arrastar para "sunday talks", uma espécie de sermões laicos de domingo de manhã, onde autores de livros com títulos nada subtis pregam a mensagem para uma assembleia de fiéis. Alguns destes novos hippies foram burgueses consumistas em tempos ou mesmo punks na sua juventude, mas bem, no fundo, quem somos nós para julgar (pronto, já estou contaminada!)… Só no dia em que eles nos oferecem um berloque do buda risonho em quartzo azul (pedra que purifica o corpo e liberta a criatividade, a sério!) para o nosso aniversário é que nos revoltamos: o ‘filgud’ não vai passar por nós!

