Pode a mentira fazer bem às relações?
Há quem considere a mentira como um “cancro” que se instala no casal e há quem a defende acerrimamente. A linha que separa os benefícios da mentira e a prática da verdade é finíssima. É que ao contrário do que gritavam Beyoncé e Shakira no tema em 2006, ninguém é assim tão Beautiful Liar.

Tenho algumas amigas bastante desconfiadas. Ciumentas, esquemáticas, quase loucas. Na maioria das vezes, os "filmes" criados nas suas cabeças demasiado imaginativas não passam disso mesmo: ficção científica da sua autoria. Noutras, pode-se dizer que se aplica bem a máxima que defende que "nas costas dos outros vejo as minhas". Elas são ciumentas e desconfiadas porque vêem no par aquilo que elas fazem, que já fizeram ou que gostariam de fazer. Isto, claro, também se aplica ao sexo oposto. Tive um namorado demasiado ciumento (ao nível do doentio) que veio a comprovar que o era porque ele mesmo fazia as coisas que, injustamente, me acusava de fazer. Porém, também se dá o caso de existir mesmo a tal mentira, ou omissão, e o "filme" da cabeça revelar-se até bastante fidedigno. Há tempos, andava eu pelo Chiado, enquanto falava ao telefone com uma amiga e, coincidência ou não, ao mesmo tempo que conversava com ela, deparei-me com o respetivo marido que se encontrava no outro lado da rua. Notei-lhe algum nervosismo, mas não hesitei e soltei um inevitável, inconsciente e supernatural grito: "Ana, olha! Está ali o João!" Ela permaneceu muda, do lado de lá da linha, enquanto ele gesticulava atrapalhado a cada passo que se aproximava de mim: "Estou a falar com a tua mulher!", exclamava eu, como se tivesse tido o encontro mais engraçado dos últimos tempos. O casal não vive em Lisboa e ele, supostamente, não deveria estar em Lisboa, mas antes em Leiria. Ela iniciou um discurso demasiado acelerado e descontrolado e ele, calmo na sua aparência, apressou-se a explicar-me. Não lhe tinha contado que viria a Lisboa, em trabalho, porque ela é realmente ciumenta e uma simples ida a Lisboa, ainda mais ao Chiado, "onde podem passar mulheres bonitas" – seria uma afronta à relação deles.
Uma vez que conheço bem a minha amiga, quase entendo a omissão da parte dele em contar que iria a Lisboa. Mas será saudável uma relação baseada nas mentiras e omissões, ainda que seja para proteger o outro ou evitar maçadas que não levarão a lado algum? "Qualquer que seja a omissão vai ter sempre um impacto grande na relação. É algo que fica entre o casal. Um ‘cancro’ que se instala e não sai. A pessoa que omite ou mente terá sempre essa sensação dentro de si. Terá de carregar, ad aeternum, o peso da mentira. Ou das mais-que-muitas-mentiras. O resultado é menos genuinidade nos gestos e atos e um sentimento de culpa que se instala. Idealmente, não há espaço para a mentira por mais piedosa que seja. Ou para a omissão. Numa lógica de custos, o custo da reparação é sempre superior", opina a terapeuta de casal Rita Fonseca de Castro. Mas a crença não é unânime. Fernanda Salvaterra, da Sociedade de Terapia Familiar, considera que "há verdades, por vezes, que não devem ser ditas ao outro, podendo ferir e magoar. Alivia a consciência de um, mas passa para o outro uma dor imensa. Não beneficia a relação", conclui. Numa outra lógica de pensamento, que quase perdoa a mentira, ou que, pelo menos, tenta entendê-la, Fernanda explica que, muitas vezes, a mentira prende-se com a incapacidade de um dos membros do casal se expressar. "Trata-se, por norma, de alguém inseguro e com baixa autoestima que, de forma a evitar o julgamento, a crítica ou o conflito, mente e omite." Na história da minha amiga e do marido surpreendido por mim, em pleno Chiado, e conhecendo ambas as pessoas, poder-se-ia dizer que se trata de um homem que faz de tudo para evitar o conflito com uma mulher que, digamos, pode-se tornar demasiado sufocante, quase psicopata? Talvez.

Em 2017, uma pesquisa do Instituto Harris revelou que 10% das conversas diárias entre cônjuges eram compostas de pequenas mentiras ou de omissões. Outro estudo realizado sob o mesmo âmbito pela Texas Woman's University, em 2014, e realizado entre casais, concluiu que é mais fácil aceitar uma mentira quando se é o sujeito da mentira e não o recetor. Ou seja, é aceitável mentir, ainda mais se for para poupar o outro, como é o caso de confessar uma traição, por exemplo, mas torna-se inaceitável quando se é a pessoa mentida, mesmo que seja para não se ser magoada. Quando o tema é traição (o qual a terapeuta de casal Rita de Castro considera uma mentira per se), Fernanda Salvaterra analisa da seguinte forma: "Revelar que houve uma traição é crucial, mas pode ser benéfico mudar algumas questões relacionadas com a traição como, por exemplo, não aprofundar quem é a outra pessoa, como [ela ou ele] é, o que faz, etc…" Sintetizando as palavras da terapeuta, é benéfico para ambos que se ensaie uma dança entre a mentira, a verdade e a omissão. Lisa Letessier, autora de Le Mensonge Dans Le Couple (A Mentira no Casal, Éditions Odile Jacob), contava à Madame Figaro que antes de escrever o livro era uma ávida defensora da transparência no casal. Contudo, ao longo do processo de escrita foi mudando um pouco a sua perspetiva: "Um dia estamos muito apaixonados e no dia seguinte o nosso companheiro sai da mira dos nossos olhos. Será assim tão necessário, a bem da verdade, informá-lo à mínima variação de sentimento em relação a ele? A vida de um casal é sinusoide", concluiu. Falou, ainda, na importância de todos termos o nosso "jardim secreto", um espaço que pertence a cada ser individual e que não implica o outro de forma alguma. Um espaço que oferece áreas de ventilação ao casal e oportunidades de recarga. "Ter o seu jardim secreto e aceitar o outro é uma maneira de respeitar a sua liberdade e a do seu parceiro."
Num artigo de opinião para o The New York Times, a propósito do Dia de São Valentim, o filósofo e romancista Clancy Martin sugere que as relações só duram se não dissermos sempre aquilo que nos vem à cabeça. Que temos de "disfarçar os nossos sentimentos, fingir e sorrir, mesmo quando só nos apetece é gritar. Em suma, que temos de mentir". Esclarece que todos nós contamos mentiras e contamo-las de forma chocante: pesquisas mostram que, em média, numa conversa comum as pessoas mentem entre duas a três vezes, a cada dez minutos. Ainda mais quando se trata de amor: porque nos importamos mais com o amor do que com a maioria das coisas e porque este nos causa mais medo que a maioria das coisas – e cuidar e temer são duas das razões mais comuns para se mentir.
Pequenas mentiras entre casal

O adultério responde, frequentemente, ao desejo de restaurar o ego. Um homem que ouve todas as noites "Ainda não puseste a loiça na máquina?!" ou uma mulher que não se sente desejada podem, um dia, querer sair para encontrar braços mais compreensivos. Depois, existe a velha e íntima questão das verdades e mentiras que acontecem na cama. "A mentira íntima não é, de forma alguma, positiva. Mesmo que sirva para não magoar o outro. Deve haver abertura para o diálogo, para uma comunicação empática e autêntica. Respeitando sempre o facto de o outro se poder sentir ofendido." Assim sendo, como abordar uma questão tão suscetível de ser mal compreendida? "Começar por valorizar tudo o que está bem e falar numa perspetiva construtiva", elucida Rita de Castro.
Além da intimidade, são outros os temas que mancham uma relação a dois com a mentira: "Questões emocionais… A pessoa saber dizer como se sente, mentiras piedosas ou omissões com sentido altruísta, achar que se está a poupar o outro, segredos que vêm da vida anterior à relação… E, não menos pesado, a situação financeira", enumera a terapeuta. Fernanda Salvaterra, da Sociedade de Terapia Familiar, concorda e acrescenta as redes sociais como sendo um dos maiores propulsores da mentira na atualidade. No entanto, para a terapeuta, comunica-se cada vez mais e melhor entre casal e as conversas íntimas são cada vez mais comuns. "No tempo dos nossos avós não havia esta abertura", clarifica. Rita de Castro, contudo, considera o oposto: "Falamos cada vez menos entre casal e isso é um erro crasso." Aponta como principal causa o facto de haver cada vez menos tempo para o diálogo devido ao estilo de vida alucinante em que vivemos. "Uma das prescrições que faço é que o casal tire, pelo menos, dez minutos diários para conversar, saber como foi o dia, como correu o trabalho… Mas uma comunicação eficaz. Escutar realmente e falar verdadeiramente."
Depois da mentira vem a tormenta
Imagine pegar num prato e atirá-lo ao chão. Depois, pegue em todos os cacos e pedaços e volte a colá-lo. É possível que volte a ser um prato e até assuma a sua função, mas as rachas ficarão lá para a eternidade. Não há como fazê-las desaparecer. Esta metáfora serve bem para demonstrar o que se passa numa relação visitada pela mentira. "Depois da mentira, e dependendo da dimensão e da forma como foi comunicada, surgem sentimentos como o ressentimento e a culpabilidade.
O que vem a seguir é um duro processo de restauração de confiança que será sempre mais difícil do que se tivesse havido a gestão de uma verdade contada numa primeira instância", esclarece Rita de Castro. A terapeuta Fernanda Salvaterra destaca a deceção e a desconfiança como o desfecho final de uma mentira ou omissão. "Reconstruir a confiança é muito difícil. É mesmo quase impossível manter a confiança como estava. Este é um trabalho que se faz em terapia: entendo o que aconteceu e porque aconteceu. São duas pessoas no processo e não há culpas solitárias. É importante analisar-se porque é que um dos membros sentiu necessidade de procurar outra pessoa…"
Em última instância e conforme explicou à Madame Figaro a autora do livro Le Mensonge Dans Le Couple, é sempre mais cansativo mentir que contar a verdade: "Quando mentimos, muitas coisas acontecem na nossa cabeça. O lobo frontal (responsável pela reflexão e planeamento), o cerebelo (envolvido na realização de tarefas) e o córtex parietal (envolvido na gestão da memória) estão em pleno andamento porque, na realidade, o nosso cérebro é formatado para dizer a verdade. Mentir requer esforço. É preciso preparar a mentira para não se contradizer." Feitas as contas à vida em casal, o que é mais importante fazer quando o objetivo é agradar ao par? Depende dos casos. Depende do grau da mentira. Depende… Tivesse eu escondido à minha amiga o "encontro imediato de terceiro grau" com o seu mais-que-tudo, no Chiado, ela teria poupado alguma voz, stress desnecessário e um novo cabelo branco? Talvez. Mas faria sentido escondê-lo? Provavelmente, não. Afinal, ele não estava a fazer nada de mal. Já ela criaria todos os "filmes" do mundo, qual candidata a Óscar para melhor argumento original, perdão, adaptado.
É mais fácil apanhar um marido mentiroso que um coxo?
De acordo com as terapeutas de casal Rita de Castro e Fernanda Salvaterra, são os homens quem mente pior. "As mulheres omitem mais em questões de pormenor", exemplifica a primeira. Já Fernanda Salvaterra considera que os homens adotam uma comunicação não tão sofisticada, relativamente ao sexo feminino. "São mais facilmente descobertos porque são mais genuínos. As mulheres, por seu turno, são bastante perspicazes na análise dos comportamentos e na evolução dos mesmos. Logo, facilmente apanham o homem na rede da mentira."
