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Mutilação genital feminina

Uma cruel realidade que infelizmente ainda existe. Veja o artigo, escrito por Célia Rosa.

25 de agosto de 2015 às 18:52 Máxima

Em alguns países do mundo ainda se cortam os genitais a meninas e a mulheres. A Guiné-Bissau é um deles. Fatumata Djau Baldé, ativista pelos direitos das mulheres e das crianças, explica o trabalho que tem sido desenvolvido no país para eliminar uma prática que põe em perigo a saúde e a vida das raparigas. Ela sabe do que fala. Porque conhece a realidade e porque ela própria foi sujeita à excisão. Tinha nove anos. A mesma idade com que foi dada em casamento. 

Toda a gente sabe que, quando se fala de Mutilação Genital Feminina (MGF) se fala de intervenções nos genitais de meninas, raparigas e mulheres. Para que não haja dúvidas do horror que é, pode explicar-nos em que consiste?

Fatumata Djau Baldé (FDB) – A MGF pratica-se em meninas,

A Guiné-Bissau apresenta uma das taxas de mortalidade materna mais elevadas do mundo – em cada dez mil mulheres, 900 morrem durante o parto ou por complicações associadas ao parto. Há uma relação clara entre a MGF e estes números?raparigas ou mulheres a quem cortam o clítoris, os pequenos e os grandes lábios. Muitas também são sujeitas a um estreitamento da vagina e a outras práticas que alteram os seus genitais, todas dolorosas, traumatizantes, perigosas e atentatórias da saúde sexual e reprodutiva e dos direitos humanos das mulheres. Tem consequências imediatas (dores, infeções, hemorragias, tétano) e outras que se manifestam na vida adulta (úlceras, abcessos, obstrução da vagina, dores durante as relações sexuais e ausência de prazer sexual) e durante o trabalho de parto – é o caso da fístula obstétrica, um buraco que se forma entre a vagina e a bexiga ou o reto, através do qual saem continuadamente urina ou fezes. A MGF está muito relacionada com outra prática nefasta que temos na Guiné-Bissau, que são os casamentos precoces. As meninas e as raparigas engravidam e como não estão fisionomicamente preparadas para um parto e foram sujeitas à excisão, acabam por ter complicações que provocam imenso sofrimento ou mesmo a sua morte. Ou a dos seus bebés. As que sobrevivem à fístula acabam por ser socialmente excluídas.

FDB – Sabemos que sim. A região leste do país regista os piores indicadores de mortalidade materna e é nessa zona que há maior prevalência de MGF. E também de VIH/sida. A mortalidade infantil, que também continua a ser muito elevada no país – por cada mil crianças, 55 morrem antes dos cinco anos –, também está relacionada com a excisão e as complicações que advêm para os bebés que sobrevivem a partos demorados e complicados. E há ainda outra questão menos falada, mas igualmente grave: quando uma menina que é sujeita à prática morre, justifica-se dizendo que era feiticeira. Hoje sabemos que a morte ocorre por infeção generalizada e por tétano.

Como é feita a excisão e que instrumentos são usados?

FDB – Para fazer o corte são utilizadas facas. Uma faca serve para excisar várias meninas, daí o elevado risco de infeção e de transmissão de doenças. A Organização Mundial de Saúde classifica a MGF segundo quatro tipos. Na Guiné-Bissau, a mais comum é a de tipo II, que é a remoção parcial ou total do clítoris e dos pequenos lábios, com ou sem excisão dos grandes lábios. Mas também temos alguns casos de tipo III, em que é feito um estreitamento do orifício vaginal e a criação de uma membrana para obstruir a vagina, deixando-se apenas um pequeno orifício para saída do sangue menstrual. Esta é uma forma muito dolorosa e faz-se para impedir as raparigas de terem relações sexuais antes do casamento, o dia em que a membrana é retirada.

No dia do casamento a mulher volta a ser sujeita a uma intervenção?

FDB – Precisamente. Com o mesmo tipo de faca que é usada para fazer o corte. Neste caso, esteriliza-se a faca no lume até ficar vermelha e abre-se o canal vaginal que tinha sido fechado por altura da MGF. Depois de passar por todo este tormento, a noiva é levada ao marido para ter relações sexuais para que os tecidos não adiram. É a justificação que é dada.

Apesar de todos esses horrores, a MGF é apoiada por homens e por mulheres…

FDB – Tem a ver com questões culturais e educacionais. As mulheres sabem que a mãe, a avó, as irmãs, as primas, etc., foram sujeitas à prática e não têm como se opor. Na Guiné-Bissau, as mulheres nascem para ser mães e esposas e ponto final. E para cumprirem o seu papel e serem aceites pelas famílias e pela sociedade têm de ter sido submetidas àquela prática. Por isso, independentemente dos riscos, as mães são as responsáveis pela preparação das filhas.

Na Guiné-Bissau, a MGF é crime desde 2011. Como é que a população e os líderes tradicionais e religiosos lidam com a nova lei?

FDB – A lei foi o culminar de um trabalho de quase duas décadas e que tem de continuar. A Guiné-Bissau é um dos países do mundo onde a prática está mais enraizada. Pensa-se que 50 por cento das mulheres tenham sido sujeitas a alguma forma de MGF. Quem a defende justifica-se erradamente com o Alcorão e o islamismo, mas é crescente o número de líderes religiosos e tradicionais que estão contra a MGF, um tema que agora está no centro do debate público: fala-se do assunto na comunicação social e no parlamento, mas também nas mesquitas e nas festas familiares, em batizados e casamentos, nas escolas, nos centros de saúde e em reuniões que organizamos nas aldeias, onde vamos explicar que estas práticas são nefastas e não definem a identidade cultural do nosso povo.

Já são visíveis mudanças? Há resistências?

FDB – Numa primeira fase não foi fácil, sobretudo junto dos líderes religiosos. Foi preciso conquistá-los, torná-los parceiros, e isso só foi possível depois de alguns professores e imãs se terem juntado a nós e começarem a passar a mensagem de que a MGF não é uma prática recomendada pelo Islão, mas sim uma violação dos direitos das meninas, das raparigas e das mulheres, que tem graves consequências para a vida e para a saúde. Juntos, passámos para o terreno e percorremos o país inteiro para chegar a todos os líderes religiosos reconhecidos, com quem passamos a trabalhar. Em 2013, dois anos depois da aprovação da lei que criminaliza a prática da MGF, os líderes islâmicos decretaram uma fatwa (decreto religioso) que proíbe a prática. Portanto, os resultados começam a estar à vista. E já temos quatro casos julgados em tribunal, com três condenações. A criminalização é uma forma de dissuasão.

Foi mais fácil envolver e mobilizar os líderes tradicionais e os chefes das aldeias?

FDB – Sim, com esses não tivemos problemas, pelo menos foi mais fácil. Na Guiné-Bissau, a MGF só existe na comunidade islâmica. Nunca foi defendida como prática tradicional ou cultural, mas sim com justificações corânicas. O desafio é pôr fim a este mito, pois na realidade não há qualquer relação entre o Alcorão e a excisão.

A MGF pratica-se nalguns países de África, do Médio Oriente e da Ásia e afeta 140 milhões de raparigas e mulheres. Mas diz-se que também é praticada entre as comunidades migrantes, mesmo na Europa. O que é que sabe sobre isto?

FDB – Na Europa, estima-se que 500 mil mulheres tenham sido mutiladas e que 180 mil raparigas estejam em risco. São os dados oficiais. Tenho a convicção que muitas vivem em Portugal. Nestas duas semanas de visita, além dos contactos com as entidades oficiais e com as organizações que estão no terreno, participei em vários encontros com as comunidades guineenses (Tapada das Marcês, Vale da Amoreira, Reboleira, Damaia, Seixal, etc.). Falei com os seus líderes religiosos, estive nos locais de culto e o que vi e ouvi deixou-me muito preocupada. Foi como se estivesse a recuar no tempo, a uma Guiné que existia há 20 anos e onde a MGF era tabu. Hoje não é assim. A MGF está no centro da agenda política, mediática e social. Mas para as comunidades do meu país que vivem em Portugal, o mundo parece ter parado no tempo. Foram-nos levantados obstáculos, dizendo que estávamos a falar de "coisas íntimas" na presença de homens e mulheres, o que não podia ser. Verifiquei que há muita falta de informação, que a comunidade vive fechada em si própria, sem acompanhar as evoluções que se registam no seu país de origem e no mundo. É mais difícil falar de MGF em Portugal do que na Guiné-Bissau.

Diz-se que há meninas portuguesas com raízes familiares na Guiné-Bissau que são sujeitas a MGF quando vão de férias ao país…

FDB – Não tenho a menor dúvida. Se não se fizer prevenção junto das comunidades, há meninas que vivem em Portugal e que correm o risco de vir a ser mutiladas. Temos a informação que foi o que sucedeu há dois anos, no verão de 2013, com jovens com idades entre os 18 e os 19 anos. Eu não conheço os casos concretos, mas recolhemos a informação possível. E estou incrédula por verificar que jovens crescidas e educadas na Europa, no século XXI, ainda podem ser submetidas à MGF depois da maioridade, uma idade em que têm todos os poderes para dizerem não. As organizações portuguesas têm feito um grande trabalho, mas não estão a conseguir fazer chegar a mensagem às comunidades, às meninas e às raparigas.

"FUI EXCISADA COM NOVE ANOS"

Qual é a sua primeira memória sobre MGF?

FDB – Eram dias de festa. A família estava reunida e celebrava-se. Quando as crianças vinham da mutilação, ofereciam-lhes roupas novas.

Que idade tinha quando foi sujeita a MGF?

FDB – Nove anos. Andava na terceira classe.

Lembra-se desse dia?

FDB – Nunca me hei de esquecer. Foi num período de férias escolares. Eu e umas primas deslocámo-nos para a zona onde viviam os tios mais velhos, pensando que nos íamos juntar com as suas filhas, nossas primas também. Íamos todas satisfeitas. Pensávamos que era mais uma festa.

Não sabia o que se ia passar?

FDB – Não tinha a menor noção. A MGF é um ritual praticado em segredo e do qual ninguém fala. É o tabu dos tabus. 

Tem memória da dor?

FDB – Até hoje. Quando falo do assunto tenho a sensação que estou a sentir tudo de novo. Eu não fui a primeira menina a ser excisada, houve duas antes de mim. Recordo-me que nós, as raparigas que íamos ser sujeitas à MGF, estávamos num lado e que a prática era feita do lado oposto. Também me lembro de ouvir gritos e choro, mas não entendia. O medo só se apoderou de mim quando me levaram para o sítio e vi sangue. Não vi o rosto da fanadeira, mas vi a faca que ela tinha na mão. 

E depois?

FDB – Estava aterrorizada e perguntava a mim mesma o que é que iam cortar. Agarraram-me, seguraram-me com força, abriram-me as pernas e fizeram o corte nos genitais. A sangue frio. É sempre. Foi muito doloroso, mas rápido. De seguida levaram-me para junto das outras crianças. Cada uma estava aflita com a sua dor e não conversámos.

E a seguir?

FDB – Depois de terminarem o corte a todas as crianças, as mulheres vieram buscar-nos para fazer um tratamento com ervas para sarar a ferida. Acho que também usaram álcool, porque ardeu imenso.

O tormento físico durou quanto tempo?

FDB – Eu sou de etnia fula. A tradição fula não se limita ao corte do prepúcio do clítoris, é mais invasiva, remove o clítoris. Mas três dias depois da prática, verificaram que não tinham removido tudo o que queriam e eu fui submetida a um novo corte. Também não resultou. Começaram a dizer que eu era feiticeira, que tinha poderes para, no momento do ato, "engolir" a parte que queriam remover. Quando não resulta é o que dizem. Foram falar com a minha mãe e pediram-lhe para conversar comigo. 

O que é que a sua mãe lhe disse?

FDB – A minha mãe estava triste, muito triste. Disse que eu tinha de deixar que me fizessem "aquilo", acreditando que o corte não tinha resultado por vontade minha. Dizia-me que eu era a única que não tinha ficado bem e que depois não seria aceite pelas pessoas.

Foi submetida uma terceira vez?

FDB – Não tinha como escapar. À terceira não me avisaram que iam fazer o corte. Eu estava entretida com as minhas colegas, vieram duas mulheres, deram-me uma pancada na cabeça e acho que desmaiei. Não me recordo da prática, não senti. Mas dessa vez ficaram satisfeitas. 

Quando é que teve consciência de que aquilo que lhe fizeram foi uma agressão?

FDB – Tinha 16 anos. Foi no casamento de uma amiga que tinha sido sujeita ao corte do clítoris e estreitamento da vagina com o tal selante. Durante a festa apercebi-me que tinham de "a ir abrir". Fiquei chocada e revoltada. Aquilo não era admissível.

As jovens não falavam do assunto?

FDB – Sou originária de uma família pobre, mas o meu pai, que tinha trabalhado na administração colonial, sempre disse que todos os filhos e filhas que quisessem podiam estudar. Eu quis e fui. Aos 18 anos já frequentava movimentos associativos. Foi nessa altura que comecei a ouvir falar da excisão e dos direitos das mulheres.

Teve oportunidade de escolher o seu marido?

FDB – Sim, mas é uma longa história. Aos nove anos, na altura da excisão, fui dada em casamento a um senhor. Era professor, muito mais velho que eu, mas não tinha nenhuma mulher. Era muito simpático comigo e concordou que eu continuasse a estudar. Mas claro que eu não tinha a mínima noção do que era o casamento.

Não é ele o seu marido?

FDB – Não. Mas quando terminei o 9.º ano, aos 15 anos, esse tal professor quis casar. Não aceitei, queria continuar a estudar. Foi um grande problema lá em casa. Os meus pais tiveram de falar com a família dele. Eu também escrevi uma carta ao professor. Ele aceitou os meus argumentos mas arranjou outra mulher e não deu conhecimento à minha família. Os meus pais sentiram-se muito feridos.

Não gostava dele ou só queria mesmo estudar?

FDB – As duas coisas. Fui para Bissau, onde fiz o 11.º e o 12.º anos. O professor visitava-me e conversávamos até que eu soube que ele já tinha outra mulher. Na altura, eu tinha 17 anos e já sabia que não queria aquele tipo de vida para mim. Conversei com ele e consegui livrar-me desse casamento. Mas aos 19 anos, a família arranjou-me outro homem. Um primo. Nós não nos entendíamos e eu já tinha conhecido aquele que acabou por vir a ser o meu marido e que, na altura, estava a estudar na Rússia. Namorávamos. Não foi fácil, mas acabei por me conseguir desembaraçar do primo e depois de um outro homem que também foi arranjado pela família. Estava à espera do meu namorado e fui-lhes dizendo que já tinha um compromisso.

Com que idade casou?

FDB – Tinha 23 anos. Havia tanta pressão sobre mim que o melhor foi casar. Com o homem que eu escolhi.

Alguma vez temeu pelas suas filhas?

FDB – Eu e o meu marido decidimos que todas as filhas que tivéssemos não seriam sujeitas a nenhuma forma de MGF e depois de casarmos avisamos as nossas famílias. Mas a família do meu marido tentou excisar as meninas. Nós soubemos, chegamos a tempo de evitar e a partir daí não voltamos a deixá-las ir passar férias, sozinhas, em casa dos avós. 

Quantas filhas tem?

FDB – Tenho duas filhas biológicas, que já estão a estudar na universidade, em Lisboa, e três adotadas, mais pequenas. Destas, duas foram sujeitas ao corte antes de estarem connosco.

Nota: A Máxima agradece ao Camões – Instituto da Cooperação e da Língua toda a colaboração que prestou para a realização desta entrevista.

 

Por Célia Rosa

Fatumata Djau Baldé é presidente do Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança, uma rede de organizações da sociedade civil da Guiné-Bissau, que conta com o apoio de organismos internacionais na luta pela erradicação da MGF e promoção dos direitos humanos. Antes, foi ministra do Turismo, da Solidariedade Social e dos Negócios Estrangeiros. Nas duas semanas que esteve em Portugal, estabeleceu contactos com organismos oficiais e ONGD’s e reuniu com as comunidades guineenses residentes na região da Grande Lisboa, onde teve oportunidade de divulgar a legislação que criminaliza a prática de MGF e alertar para os perigos que a prática comporta para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres.
Fatumata Djau Baldé é presidente do Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança, uma rede de organizações da sociedade civil da Guiné-Bissau, que conta com o apoio de organismos internacionais na luta pela erradicação da MGF e promoção dos direitos humanos. Antes, foi ministra do Turismo, da Solidariedade Social e dos Negócios Estrangeiros. Nas duas semanas que esteve em Portugal, estabeleceu contactos com organismos oficiais e ONGD’s e reuniu com as comunidades guineenses residentes na região da Grande Lisboa, onde teve oportunidade de divulgar a legislação que criminaliza a prática de MGF e alertar para os perigos que a prática comporta para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres. Foto:
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