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De Pai para Filha: Mariana Lança e os destinos da Herdade Grande

É uma empresa familiar, e ostenta talvez o mais antigo apelido do universo dos vinhos do Baixo Alentejo: Lança. Fundada há mais de um século, a Herdade Grande vive hoje a passagem de testemunho de António para Mariana, uma mulher num mundo de homens.

Foto: DR
13 de agosto de 2024 às 16:31 Diego Armés

O sol inclemente das onze horas de uma manhã de julho é capaz de trazer desconforto à mais agradável das conversas. Mariana Lança recorda, a propósito, aquela vez que, numa manhã assim destas, sentiu rente ao chão o sopro do vento quente varrer-lhe as vinhas e temeu, com razão, o pior. "No dia seguinte, as uvas estavam quase todas queimadas. Aqui é assim", diz, e fala-se um pouco daqueles que se veem obrigados a vindimar cada vez mais cedo, "uns começaram a meio de julho", comenta-se; "dantes, a vindima era em setembro, às vezes, outubro", alguém lembra com certa saudade. 

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"Aqui" - lá, naquele sítio - é o princípio do Baixo Alentejo, mais precisamente a Vidigueira, terra de muita vinha e de muitos produtores. Só neste pedaço de terra - um pedaço imenso, diga-se -, que vai da estrada da Cuba ao IP2, são cinco ou seis herdades. "Aqueles dali já pertencem a Cuba", assinala com respeitável sabedoria António Lança, que pode ser vagamente definido como "o criador disto tudo". E "isto" - aquilo - tudo é a Herdade Grande, uma terra da família Lança que chamou António às raízes, desviando-o de uma vida previsivelmente citadina, e que agora reclama a sua herdeira, Mariana, que tomou as rédeas do negócio e da propriedade.

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A HERDADE GRANDE

A propriedade já tem mais de 100 anos. Dizer que António Lança é "o criador disto tudo" peca por um certo excesso quando nos referimos a uma propriedade cujo centenário se assinalou há quatro anos. Foi em 1920 que um agricultor de Aljustrel se apaixonou por estas terras à beira da Vidigueira e decidiu adquiri-las. Ernesto dos Santos Lança, avô de António, bisavô de Mariana, foi o responsável pelo estabelecimento da família neste lugar que, há já mais de um século, apresentava, como hoje, culturas de vinha e de olival. 

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Depois de Ernesto, veio Eduardo Lança, seu filho - pai e avô de António e Mariana, respetivamente -, que deu continuidade ao trabalho do fundador e à produção do vinho de talha, tão tradicional da região. Mas foi a terceira geração da dinastia que tornou a Herdade Grande ainda maior: foi António Lança que, depois de se licenciar em Engenharia Agrónoma, em Lisboa, decidiu retornar às origens e redirecionar os destinos da Herdade. Em 1980, assiste-se a uma reconfiguração dos terrenos, que passam a ocupar uma área de 60 hectares. O início da década de 1980 marca também uma era em que é feita uma grande aposta na diversidade de castas - nacionais e internacionais - e durante a qual se iniciam experiências de adaptabilidade ao terroir.

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Até 1996, os vinhos produzidos na Herdade eram vendidos a granel. É a partir de 1997 que surge a marca Herdade Grande nos rótulos das garrafas. Inicialmente preparada para produzir entre 350 mil e 400 mil garrafas por ano, a Herdade Grande foi crescendo gradualmente e engarrafa atualmente cerca de 450 mil litros de vinho. Hoje, os 60 hectares de vinha da propriedade são compostos por uvas tintas a 70% e uvas brancas no restante, atingindo uma capacidade de produção de 500 toneladas por ano. Metade destas vinhas da Herdade têm mais de 30 anos e é nelas que se pode encontrar cepas já com muitas  - seis, sete, até oito - décadas de idade.

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Além dos vinhos, a Herdade Grande lançou, em 2008, a sua própria marca de azeite. Depois de potenciada a área de olival previamente existente, ter um rótulo próprio era o passo seguinte mais lógico. As variedades de azeitona Cobrançosa e Galega conferem ao azeite da Herdade os seus aromas e sabores característicos.

MARIANA

"É preciso ter um pulso muito firme, ser muito assertiva. Ter noção dessa fragilidade que veem em nós, enquanto mulheres, é meio caminho andado para ter sucesso junto da equipa de campo." Mariana Lança explica desta forma o modo como consegue ter o respeito daqueles com quem trabalha, principalmente quando se trata de trabalhar o campo, a terra, o olival, a vinha. "Cheguei a dar conta da vinha e do olival sozinha", conta. "Hoje, já tenho quem me ajude. Mas o que eu experiencio é com os tratoristas, com o pessoal de campo. E não é fácil levarem-nos a sério", acrescenta. "Uma das lições que aprendi é que é preciso saber mesmo aquilo que que estamos a fazer." 

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Mariana Lança irá, daqui a pouco, dar um exemplo de como foi conquistando o respeito das pessoas com quem trabalha, e convém dar ao leitor algum contexto, para que melhor possa compreender a importância desse "ganhar o respeito" e as dificuldades que lhe eram e são inerentes. Mariana, além de ser mulher, era ainda muito jovem quando começou a liderar as equipas; é a filha do patrão; além disso, embora tenha com a Herdade uma relação longa e muito próxima (durante a conversa, conta como desde criança adorava vir para o campo, estar com o pai nas vinhas, observar os processos, perceber como se faziam as coisas, falar com as pessoas), o que trazia na bagagem académica nem sempre batia certo e estava em sintonia com os hábitos, tradições e intuições daqueles que estavam acostumados àquele trabalho.

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Vamos ao exemplo. "Isto até é geral, mas agrava-se quando és mulher", diz, ao jeito de nota introdutória, antes de reportar o episódio. "Eu tenho muita facilidade em acordar cedo", acrescenta, em mais uma linha do prelúdio. "Tínhamos um tratorista e eu chegava ao pé dele e dizia-lhe ‘Zé, às quatro [da madrugada] começamos o tratamento’. Ele era da velha guarda. Às três e meia, estava eu na Herdade. ‘Então, mas o que é que você veio cá fazer?’, perguntava-me ele. ‘Ó Zé, eu vim ver se você chegava e se começava  o tratamento.’ ‘Então, mas não há necessidade’, respondia-me. ‘Não, vamos a isso’, e assim fui ganhando a confiança."

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Mariana Lança assumiu a direção geral da Herdade Grande em 2011. Foi, também esse, um passo natural no progresso da empresa. Durante a conversa, aproveita para comparar o contexto e o entendimento da mulher no mundo agrícola: como era então e como é hoje? "Era mais difícil", não tem dúvidas. "Hoje já se fala muito mais da mulher neste mundo." Por um lado, é a evolução natural e necessária, é um sinal - um bom sinal - dos tempos. Mas também há um lado individual e circunstancial para esta observação. De novo, Mariana recorre àquele exemplo concreto: "Há um tratorista que me conhece desde que eu era uma criança pequena e depois há um dia em que eu chego ao pé dele e lhe digo que é preciso dar tratamento à vinha… não é fácil. Tive de, à minha maneira, fazê-lo ver que não se tratava de uma decisão ‘porque sim’, mas que havia realmente uma necessidade. Às vezes, é preciso parar um bocadinho para explicar às pessoas o propósito." Diz que é preciso ser-se terra-a-terra, ao mesmo tempo que se mantém a firmeza e se mostra determinação.

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A comparação entre o "antes" e o " agora" faz sentido para compreender como é vista uma mulher num mundo ainda maioritariamente masculino, como o dos vinhos  - e também todo o mundo agrícola, já agora. Do mesmo modo, será interessante perceber a maneira como Mariana Lança é vista num papel mais institucional e diplomático, representando a Herdade Grande no mundo dos negócios, também ele maioritariamente dominado por homens. "Nesse contexto, sinto um pouco o contrário", diz. "Se eu estiver sozinha a representar o nosso projeto, a questão de ser mulher não tem peso." Ou, se tem, é um peso vantajoso, "ser mulher pode ser um cartão de visita, há um lado mais cerimonioso". Afirma nunca ter sentido o ser mulher como uma fragilidade no campo dos negócios. "Senti muito mais no mundo agrícola do que na parte comercial e de representação", conclui.

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Mais tarde, a diretora-geral da Herdade Grande há de conceder que, por vezes, quando os homens estão em clara maioria nesse ambiente de negócios, há uma espécie de atitude geral difícil de descrever, "mas que se sente", em relação às mulheres. O que será, questionamos. Será uma tendência para, de certa forma, subestimar? "Sim, subestimam." Vamos a exemplos concretos. "Há uns tempos, participei numa apresentação, uma coisa simples na Makro. Houve uma prova de vinhos. E as pessoas custavam a acreditar que uma mulher pudesse ser parte da produção, ter participado no processo agrícola e ainda ser rosto do projeto." No entanto, e graças às tais mudanças dos tempos, "com tanta mulher que existe no setor", hoje em dia Mariana Lança garante que já não sente especial singularidade ou qualquer tipo de discriminação. Mas não deixa de sublinhar que "no terreno", na agricultura, aí sim, é um desafio exigente.

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A HERANÇA E O FUTURO DE UMA PAIXÃO

Toda a conversa com Mariana Lança decorre à mesa de almoço em plena Herdade Grande. Uma mesa à qual se senta também o pai, António Lança. Degustamos iguarias regionais, pratos tradicionais, tudo caseiro, feito na mesma manhã e segundo os preceitos e as decisões de Dona Teresa, cozinheira "de mão cheia" residente da Herdade. É das mãos dela que, de acordo com os produtos sazonais disponíveis, saem as delícias que os visitantes podem provar nas experiências de enoturismo.

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Rissóis e croquetes, queijos e enchidos da região, azeite da Herdade Grande, pão regional, cachola, uma série de pequenas maravilhas antecede o prato principal do repasto: gaspacho à alentejana com "jaquinzinhos" fritos. Tudo, claro, acompanhado por uma cuidada seleção de vinhos da casa - o que, neste caso, corresponde a grandes vinhos, entre os quais se encontram os Garrafeira Tinto e Branco, o Roupeiro Vinhas Velhas, os Amphora (vinho de talha) Tinto e Branco ou o Dama do Monte, entre outros que foram dados a provar.

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"Tudo isto é uma paixão", diz António Lança. Falamos de como Mariana passou a tomar conta dos destinos da Herdade, claro - António conta, a propósito e em tom de brincadeira, que não lhe agradava a ideia de que a filha lhe seguisse as pisadas no que respeita aos estudos (tiraram, pai e filha, o mesmo curso, formando-se em Viticultura e Enologia) -, mas também de todo o seu percurso dentro da Herdade até chegar a este ponto. "Eu nasci além", contava António quando nos recebeu à chegada, apontando para um casario rodeado por vinhas, lá longe, do outro lado da pequena estrada que divide as propriedades. É ali que fica o Monte Velho, o sítio onde tudo começou quando Ernesto Lança comprou as primeiras terras. Esse sublinhado, "eu nasci ali", mantém-se latente ao longo de todo o encontro. Esta não é só uma história de uma família que faz vinhos. É muito mais do que isso, é uma história de raízes e de retorno, de ligações e de testemunhos que se passam. Uma história de heranças, de continuidade, de gerações que continuam aquilo que os antepassados começaram e que outros posteriormente prolongaram - modificando, melhorando, acrescentando.

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Mariana Lança, que desde criança fazia questão de vir passar os fins de semana e as férias com os avós à Vidigueira e, mais precisamente, à Herdade Grande, sempre mostrou grande paixão por esta terra, pelos animais, pelo olival e, em particular, pela vinha. O convite que o pai lhe fez, em 2011, para liderar o projeto não era sequer irrecusável porque aceitá-lo era da mais elementar lógica, do mais natural bom-senso, dando um toque tão simples quanto perfeito à ordem natural das coisas. Uma ordem que há de continuar, porque os olhos estão sempre postos no futuro, assegurado não apenas pela juventude de Mariana e pela visão de António, mas também pelo sangue novo que se foi juntando à equipa. É o caso do enólogo Diogo Lopes, que, assim que chegou, introduziu novidades nos vinhos da Herdade, ora reforçando a aposta na tradição dos vinhos de talha, ora inovando nas abordagens à enologia e no lançamento de monocastas.

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É também com Diogo Lopes que nasce o Roupeiro Vinhas Velhas, num gesto de valorização da mais antiga vinha da propriedade. Além destas e de outras inovações introduzidas pelo enólogo, merece destaque o olhar da família Lança para  as possibilidades do vinho biológico, cuja plantação - 3 hectares - ocorreu em 2017 e a primeira edição sairá este ano. Todos estes são exemplos de que nesta casa centenária há ainda muito território por explorar, muitas surpresas por descobrir. O futuro já está a ser preparado.

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