As mulheres do Óscar
Já sabemos que o Cinema é uma indústria de homens. Mas também estamos cientes que, sem as mulheres, ele não teria existido e nem sequer faria sentido. Com os Óscares à porta, recordamos atrizes que escreveram a história desse galardão tão cobiçado e, por sequência, a da 7.ª Arte.

A cena é inesquecível. No fim da majestosa escadaria da velha mansão construída em Sunset Boulevard, na época áurea do cinema mudo, a proprietária, Norma Desmond, uma diva que caíra no esquecimento dos estúdios e do público e que sonhava, ingloriamente, com o regresso ao cinema, cujo advento do som lhe roubara a celebridade, encara, alienada, a grande lente de uma máquina de filmar. A loucura súbita gerada pelo desvario dos ciúmes e que a levara a abater o amante, a tiro, horas antes, fá-la crer estar a ser dirigida por Cecil B. DeMille, na cena final de Salomé, o pressuposto filme cujo argumento, inenarrável, escrevera quase interminavelmente ao longo de anos. Levá-la a acreditar nisso, não era mais que o ardil encontrado para a tirar de casa com dignidade.

"(...) com o espoletar os blockbusters modernos interpretados por homens e com o respectivo apogeu nos últimos dez anos, têm surgido menos oportunidades para as actrizes, razão pela qual algumas delas têm protestado contra essa hegemonia (...)"
É olhada, com incredibilidade e compaixão, pelos repórteres, cronistas sociais, agentes policiais e operadores de câmara que agitam a casa. É nesse momento derradeiro que, após declarar a alegria de estar de volta aos estúdios, profere as palavras que, ao contrário dela, se tornaram memoráveis: "Alright, Mr. DeMille, I’m ready for my close-up." Esta cena e esta frase icónicas pertencem a O Crepúsculo dos Deuses, no título original Sunset Boulevard, de 1950, e marcam um dos filmes que retrata, com maior crueldade, a engrenagem devastadora que pode ser a indústria do cinema. É também uma das películas com o diálogo mais rico e mais bem construído, o que, nos dias de hoje, é quase um milagre existir. Nela, e por ironia, a estrela principal é uma actriz que também já estava quase esquecida, Gloria Swanson, considerada por estudiosos do Cinema a maior diva do seu tempo, não obstante a existência de outras, como Theda Bara, Mary Pickford, Pola Neri, Mae West ou Clara Bow. Miss Swanson foi a primeira actriz a assinar um contrato no valor de um milhão de dólares e a ter uma linha de cosméticos com o seu nome. A influência da actriz junto do público era tão forte que Gabrielle Chanel temeu as repercussões que poderiam advir para a marca que fundara devido a uma cena em que Swanson, num acesso de fúria, rasga um vestido de noite que Chanel criara para o guarda-roupa do filme. Gloria Swanson fez um retorno triunfal, mas efémero, no dramático O Crepúsculo dos Deuses, após ter contracenado em 66 filmes. Este seu primeiro papel falado mereceu-lhe a nomeação para o Óscar de Melhor Actriz, em 1951, tendo, antes, sido nomeada em 1929 e 1930, na era do cinema mudo. Era a actriz preferida, mas perdeu para Judy Holliday, na comédia A Mulher que Nasceu Ontem. Swanson faz parte da galeria das grandes perdedoras do Óscar. Serão incontáveis as actrizes que foram nomeadas ou que o deveriam ter sido, ao longo das 87 edições do troféu de cinema mais desejado, não obstante a existência de outros certames cinematográficos mais credíveis. Na minha modesta opinião, Glenn Close é a grande perdedora (com seis nomeações), em contraste com a estranha obsessão dos votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, de Hollywood, por Meryl Streep. Mas ao longo do tempo, outras têm feito companhia a Close: Judi Garland, Deborah Kerr, Barbara Stanwick, Gena Rowlands, Blenda Blethyn, Emmanuelle Riva ou Judy Dench.
As divas pertenceram a um passado construído pelos grandes estúdios de Hollywood para tornar, com sucesso, a dita Meca do Cinema numa Fábrica de Sonhos. Foi no tempo em que o público ia ao cinema propositadamente para ver as actrizes, fosse qual fosse o actor principal, o realizador ou o argumento dos filmes. Isso explica que a primeira das divas, Theda Bara (1885-1955), haja participado em 12 filmes mudos rodados num só ano. Bette Davis é exemplo dessa adoração, pois aos 27 anos já detinha um Óscar e 22 filmes no palmarés. A partir da década de 1980, com o espoletar dos blockbusters modernos interpretados por homens e com o respectivo apogeu nos últimos dez anos, têm surgido menos oportunidades para as actrizes, razão pela qual algumas delas têm protestado contra essa hegemonia, com destaque para Genna Davis. A 14 de Janeiro de 2016, a Academia anunciou as nomeações e a 28 de Fevereiro saberemos quais serão as vencedoras e os vencedores e as perdedoras e os perdedores.
"Para 2016, e como sempre, as mulheres irão servir, essencialmente, para "enfeitar" a festa na passadeira vermelha e no palco para gáudio dos insípidos e clonados sites de moda e das estupidificantes bloguers, apenas interessados no que se empresta às actrizes para vestir na cerimónia."
Esperemos que não se repita o que aconteceu o ano passado quando os Óscares tiveram o menor número de mulheres nomeadas e com idêntica situação para os profissionais que não são caucasianos. Apesar de os cerca de 6000 votantes da Academia estarem resguardados pelo anonimato, o Los Angeles Times "furou" o secretismo e divulgou, há dois anos, que 93% do júri eram caucasianos; que 76% deles pertenciam ao sexo masculino; e que a média de idades rondava os 63 anos. Apenas 14% estariam abaixo dos 50. Face a isso, a Academia "refrescou" os votantes, mas quase nada mudou: dos 432 novos jurados, mais de 80% são brancos e a idade média atinge os 50 anos. Para 2016, e como sempre, as mulheres irão servir, essencialmente, para "enfeitar" a festa na passadeira vermelha e no palco para gáudio dos insípidos e clonados sites de moda e das estupidificantes bloguers, apenas interessados no que se empresta às actrizes para vestir na cerimónia. Se os Globos de Ouro ainda são a antecâmara dos Óscares, então tudo continua na mesma: as mulheres apenas têm oportunidades nas categorias de melhores actrizes. Ainda assim, não poderemos desprezar o quanto a elegância das actrizes tem contribuído para o prestígio do evento televisivo mais mediático. É, sobretudo, a partir de 1996 que espoleta a importância das grandes marcas de moda nos Óscares. Nesse ano, Susan Sarandon envergou um vestido de noite de Dolce & Gabbana e a situação tornou-se incontrolável, desde então. Antes dela, Elizabeth Taylor recebeu um Óscar vestida por Dior, em 1961, e Jane Fonda brilhou num smoking da marca Yves Saint Laurent, em 1972, mas ninguém prestou atenção a isso, até porque essas vestes foram pagas pelas actrizes e não tiveram a pressão das marcas para que se lhes faça propaganda. O ano de 2016 não será excepção nesse brilho, já que existem actrizes talentosas e belas que deslumbram o mundo na noite dos Óscares, seja para anunciar "E o Óscar vai para…" ou para o momento de glória em que, por delicadeza e por decência, terão de reconhecer a atribuição do galardão começando por afirmar, num soluço gerado pela emoção, as palavras batidas "Gostaria de agradecer…". Para serem originais terão de ter a genialidade teatral de Norma Desmond. Só que o tempo das divas terminou quando a Fábrica de Sonhos que foi Hollywood deixou, ela própria, de nos fazer sonhar…
