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António de Castro Caeiro: “A ideia do feminino e da 'mariquice' como sendo sentimental é uma fórmula estúpida”

Segundo o professor António de Castro Caeiro que, até ao verão de 2025, dá conferências mensais sobre os sentimentos, no CCB, toda a realidade é sentimento. E a filosofia é feminina. Quer pôr-nos a pensar o sentir.

Foto: Matilde Fieschi
26 de dezembro de 2024 às 16:48 Patrícia Barnabé

Se dizer o que se pensa hoje parece banal, ainda que moralizado, dizer o que se sente continua a ser visto, socialmente, como um flanco dado à vida. Quando o que sentimos diz tanto sobre como pensamos, e vice versa. António de Castro Caeiro fala destes temas com a sabedoria dos antigos e o humor dos inteligentes, que é oportuno e treinado no pensamento. Desde 1990 que dá aulas de Filosofia Antiga e Filosofia Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa, traduz clássicos e escreve livros. O mais recente, O que é a Filosofia [Tinta da China], de 2023, inspirou as conferências que começou a dar, a pedido do CCB, para levar a Filosofia às pessoas, tirando-lhe o pó da cátedra e arejando-a. Todo o pensamento precisa de respirar. O CCB propôs gravar as aulas para um podcast, "o RAP [Ricardo Araújo Pereira] achou graça, falou no programa e eu passei a limpo as aulas", recorda. Já vai na segunda edição.

Conta-nos que foi para Filosofia porque se interessou por Matemática e Engenharia, que o levaram à Lógica. Quando entrou na Universidade Nova, "todos os dias abriam-se-me avenidas", recorda.  Praticante de artes marciais há 43 anos, chegou a tocar na conhecida banda punk Mata-Ratos, e foram livros como o Cosmos de Carl Sagan que inspiraram a missão de professor, de tornar fáceis temas complexos, mas sem nunca aligeirar.  Fez uma introdução ao tema a 3 de outubro, falou sobre Espanto a 31, sobre Desejo a 28 de novembro e sobre Ira a 19 de dezembro. Seguem-se seis aulas imperdíveis e abertas a quem goste de pensar: Nostalgia (30 jan), Melancolia (27 fevereiro), Sublime (27 março), Liberdade (24 abril), Amor (29 maio) e Esperança (26 junho).

Julgamos a Filosofia distante, quando é tão humana e universal: porque escolheu os sentimentos desta vez?

O sentimento é uma forma eruptiva de sentir a realidade. Esse é o método filosófico, desde sempre. A maneira como temos acesso às coisas é sentimental. Depois podemos dizer que são emissões mais ligadas ao corpo, que são afeções, paixões. Descartes tem o Tratado das Paixões da Alma, onde trata de tudo menos de amor romântico, porque os dois grandes passos de que falavam os antigos eram o desejo de prazer, e a ira, o desejo de vingança, a fúria. E, a partir daí, todos os outros se podem constituir. Portanto, a ideia do sentimento como forma de acesso está muito próxima do que estudo em Aristóteles, Heidegger, Marc Sheller, os contemporâneos. Também é estudado pela tradição anglosaxónica. O professor António Damásio, que vem das Neurociências, cita William James e os que decorrem daí. Achei que era possível encontrar um meio comum a diversas tradições e maneiras de pensar, do ponto de vista científico, para o qual sou completamente incompetente, refiro en passant, e do ponto de vista analítico. É uma análise temática e as pessoas depois vão ler.

Normalmente associa-se a Filosofia à razão e separada da emoção.

Nietzsche diz que a razão é também uma forma de sentimento e é apática (risos).

O Ocidente e o século XX foram muito "ofuscados" pela razão, no advento da Ciência, e a expressão de sentimentos começou a ser considerada menor, uma fraqueza. Confiar nos sentimentos passou a ser coisa de mulheres, um preconceito. A expressão "sentimental" não é bem vista, um ser sentimental está aprisionado.

O preconceito em relação ao sentimento é um conteúdo de conhecimento folclórico, popular. Porque a Filosofia é um sentimento. Como a nossa relação com a Arte é um sentimento. O nosso sentimento é religioso e, portanto, desde a Antiguidade que os pensadores não faziam a distinção entre o que era Filosofia e o que era Medicina; por exemplo, os primeiros textos de Filosofia são os médicos. E depois o que é a Comédia, o que é a Tragédia, o que é lírico, o que é a epopeia? Era a vida. Se lermos Homero percebemos que tudo o que funciona ali é tudo menos racional, há um elemento racional porque ele interpreta o que está acontecer. O Ocidente inventa, na verdade, o pensamento. O que os filósofos fazem é ler retroativamente, retrospetivamente, como um anacronismo, a partir, em parte, da revolução platónica: descobres o logos, a proporção, a Música. Aristóteles diz que é uma péssima educação pedir a um matemático que o convença da verdade dos seus teoremas, e pedir a um orador que lhe prove matematicamente o que está a dizer, porque são domínios completamente diferentes. Agora esta moda das pessoas serem ateias: ser ateu significa que eu posso mostrar-te que Deus não existe. É uma forma de vistas curtas relativamente ao que está em causa, porque eu não consigo provar que Deus não existe como não consigo provar que Deus existe. De facto, o projeto da Filosofia no Ocidente é realizado na indústria, na tecnologia, na ciência contemporânea, existências na nossa própria realidade; os descendentes de um certo tipo de pensamento grego são a tecnologia, a indústria, a ciência, que nós temos de facto, hoje, como manifestações do ser.

O tempo em que vivemos exige que voltemos a olhar um pouco para os sentimentos, não lhe parece?

O pensamento teológico tem muitas correntes e há uma tentativa de reabilitação do sentimento. Porquê? Do ponto de vista da formulação matemática, diz Aristóteles, quer eu tenha uma dor de dentes, ou não, os ângulos internos de um triângulo medem sempre 180º. Mas o que acontece é que se me doerem os dentes, eu não vou pensar em Geometria, se calhar não me apetece. Mas houve, de facto, uma atribuição de prémios: primeiro, a Lógica, segundo, a Ética ou a vontade e, em terceiro lugar, a Estética ou a relação com as paixões. O século XIX procurou premiar o sentimento, a vontade deixou-a estar e, em último lugar, o que se constitui de um ponto de vista estritamente teórico. A nossa disposição em relação às coisas muito dificilmente é teórica. Só é quando qualquer coisa resiste, quando entramos em casa e a luz não funciona ou não há café.

Até a nossa paixão pela teoria não deixa de ser uma paixão.

Exatamente, e para os gregos era isso. Aristóteles diz que os sacerdotes do Egito começaram a olhar as estrelas porque tinham tudo salvaguardado. Para passar o tempo, por curiosidade. Ou seja, a teoria funda-se também nessa forma sentimental. Autores como Heidegger ou Nietzsche, por exemplo, procuram mostrar que o sentimento não é cego, o amor não é cego, o amor faz ver. E há versões sentimentais e emocionais que são cegas, e não sabemos bem porque fizemos aquilo, mas trazem uma mensagem. A Hermenêutica, ou interpretação filosófica, não é reflexiva, mas a tentativa de perceber a história de uma emoção na nossa vida, é autobiográfica. E quando nós tentamos compreender o outro, quando dizemos: "não te percebo", nós queremos entrar dentro da pessoa, no que lhe passa pela cabeça do ponto de vista emocional, sentimental, afetivo. Ou seja, quando conhecemos alguém que consegue entornar a sua atmosfera disposicional, e toldar-nos, consegue exportar o inferno e consegue levar-nos ao céu, e vice-versa.

O coração tem a razão que a razão desconhece.

Estão paredes meias, o coração com a razão. E o acontecimento racional fornece um prazer tremendo do cálculo, a capacidade de antecipação: eu estou já a ver o que vai dar. Por isso é que adoramos Estatística e contrariamos a teoria do caos. Por outro lado, ficamos fascinados com a teoria do caos porque todos os fatores podem ser anulados com um, qualquer coisa acontece e entorna tudo. No fundo, um sentimento tem essa capacidade de abertura racional, não há um sentimento sem razão e nenhuma razão é tão cega ao sentimento, que seja fria ou apática.

Até porque recebe muita informação vinda pelos sentidos.

Mesmo a cor de uma coisa altera-se, não pelas condições climatéricas, mas pela maneira como nós vemos as coisas. Ficamos tingidos com aquela cor. Os primeiros dias de primavera na infância, os primeiros dias de férias quando vamos para um sítio onde estivemos, provavelmente são os mesmos, é a mesma coloração e qualidade da luz, mas já não conseguimos ver aquilo.

E, com a velhice, ficamos mais perto dos sentimentos, damos-lhes mais importância?

Depende, o único conteúdo da vida é o sentimento, se nós não ligarmos ao sentimento, ficamos com muito pouca coisa. O nosso património, as lembranças dos pais, de quem morre, é um património sentimental e não há nada que o substitua. Uma fotografia pode incandescer e tornar presente uma memória, mas a memória é um conteúdo sentimental, e tem vida própria. Se não houver isso... E há outro ponto que gostava de comentar, acho muito interessante: Kierkegaard diz que a filosofia é feminina porque tem de ser sentimental, ou seja, o sentimento, de facto, é a transformação do filósofo em elemento feminino. [Carl] Jung fala que temos animus e anima, o animus é a versão masculina da alma, e a alma/anima a versão feminina do espírito. Eu acho que o humano, sendo sexual, não tem sexo, nesse sentido. Há mulheres profundamente racionais como há homens profundamente sentimentais. Temos essa tradição que é folclórica. Fernando Pessoa, é difícil de perceber, mas se lermos o Livro do Desassossego, ele fala da primavera da infância e da primavera meteorológica e essa cisão é porque a doença faz parte do filósofo, uma doença que me mostra as coisas fora da psicopatologia da normalidade. E eu quero estar doente, claro.

Então porque nos esforçamos tanto para esconder o manancial extraordinário dos sentimentos? Há uma ideia de força, de proteção, se não demonstrarmos o que sentimos.

Também pode ser interpretado de outra maneira: alguém quer camuflar e esconder a possibilidade de fazer uma emboscada ao outro. Um grande CEO, e embora seja difícil pensar no [Elon] Musk, tem um sentido apuradíssimo, diabólico, e é sentimental. Não vai lá apenas com uma despistagem racional. Tem um faro, quase um instinto assassino, para perceber onde é que está a carcaça morta e onde está a vida. É sentimental. O uso, depois, pode ser calculista ou oportunista, mas isso é completamente diferente. Do ponto de vista racional, se passarmos a tarde inteira a estudar Lógica, ficamos felizes, é como se estivéssemos a jogar um jogo, há um certo encanto nessa forma específica de inteligência. E há pessoas estúpidas sentimentalmente como há pessoas estúpidas intelectualmente. Ou nós temos os nossos momentos em que não estamos a ver nada do ponto de vista racional e intelectual, ou do ponto de vista afetivo e emocional. Somos cata-ventos, mega-sensores. Depois, está concebida a estética do combatente, do general, do sacerdote, que são homens.

Os sem medo.

Os sem medo, o que é uma fórmula completamente estúpida, porque para sermos corajosos temos de ter medo. É como diz Platão: o timoneiro sabe que a tempestade não vai derrubar o navio, mas quem não sabe está cheio de medo. Ele domina o que está a acontecer, não tem medo, não é corajoso, o corajoso é quem está ali a aguentar-se. E a própria ideia do feminino e da 'mariquice' como sendo sentimental, é uma fórmula completamente estúpida. Um dos preconceitos que eu destruí cedo foi a ideia do "maricas", como se fosse fraco. Alexandre o Grande é quem? A pessoa mais corajosa, tem o império mais poderoso e era claramente homossexual.

Na primeira aula disse que estamos sempre a ser bombardeados por sentimentos.

Penso que são 12.000, nós chegamos ao fim do dia e temos a tónica do dia. E pode ser um único acontecimento ou uma série de acontecimentos: chegámos atrasados a tudo, aqueles dias em que mais valia não ter saído de casa, ou o dia em que tudo bate certo. E, ao fim do dia, os vetores são sentimentais. Se eu estiver exposto, artificialmente, a filmes ou músicas ou sons ou fragrâncias ou paladares, eu percebo essa mudança. Mas sem estar exposto, percebo e lembro-me de coisas que não lembram ao diabo, pessoas que aparecem e depois desaparecem, percebemos que estamos expostos. Quando aparece alguém antipático do passado transforma aquele momento num momento antipático. A relação causa-efeito também funciona porque há sentimentos que vêm do futuro, associados a coisas que só vão acontecer no futuro: "Daqui a 5 milhões de anos, o sol vai extinguir-se. Metia-me medo quando era miúdo, e eu não vou estar vivo, de certeza absoluta. E 5 mil milhões de anos não é nada comparado com o tempo da eternidade, mas esse tempo aparece-nos sentimentalmente. Portanto, ou temos um sentimento predominante, que pode ser uma ideia fixa, recursiva, obsessiva, ou temos várias ideias e não nos conseguimos fixar em nenhuma, há uma fuga de pensamentos, um comportamento errático, um défice cognitivo de atenção. Mas isso tudo é compreendido porque, justamente, há uma alteração no sentimental. Às vezes pode ser falta de lítio, de açúcar, de sono, ressaca.

E haverá pessoas com uma aptidão sensitiva maior do que as outras para compreender a realidade?

Acredito que sim. Há relações de encosto, mediúnicas, telepáticas, sem dúvida. No século XIX, Hirsch é um biólogo neo-vitalista [o Vitalismo é a crença de que os organismos vivos contêm algum elemento metafísico] e faz experiências, é um cientista sério, faz Parapsicologia e organiza sessões espíritas em Nova Iorque e Londres. E acha que há sensações e percepções parapsicológicas que nós podemos combinar, ele tentava prová-lo com uma base científica. E temos histórias conhecidas de alguém que se lembra de alguém, os gémeos, ainda mais os siameses, que se sentem...

Ou coisas simples como eu penso que tenho de ligar a alguém e essa pessoa liga-me.

A ideia da coincidência ou da sincronização, de que fala o Jung. Tudo depende das vistas curtas que temos. Se nós ampliarmos o que se está a passar na coincidência, anula-se a coincidência. O caos existe porque não há uma extensão dessa análise. Uma vez sonhei com o meu melhor amigo, de infância, que morava na minha rua e era meu colega, e morreu nesse dia num desastre de automóvel. Não há uma premonição no sentido de eu estar a adivinhar o que é que ia acontecer, mas lembro-me de o meu pai me ter dito: "Ele queria falar contigo". Foi o único, e espero não ter mais nenhum, o pressentimento ou o after thought, o olhar retrospetivo sentimental, que é negativo. O ressentimento existe e nós pensamos e repisamos o sentimento do rancor. Às vezes, as pessoas já morreram e nós continuamos ressentidos, a realidade do sentimento é muito mais eficaz do que a realidade da realidade. Ou seja, uma cidade é destruída do dia para a noite, mas o sentimento dela permanece enquanto existirmos. Alexandria existe e a sua biblioteca existe, mesmo que nunca lá tenhamos ido, é uma criatura da nossa imaginação.

E não devemos deixar que a vida nos neutralize os sentimentos. Adoro aquela imagem do manifestante, à porta do Parlamento, sozinho, e quando alguém lhe diz que sozinho não muda o mundo, responde: "Estou a tentar que o mundo não me mude a mim."

Há uma partida que o sentimento prega. Imaginemos que queremos um momento de inspiração, os gregos diziam "entusiasmo" que, à letra, quer dizer "ser tomado por Deus, por dentro, pelo lado de dentro." E é uma forma de descrição do que é estar apaixonado, o enamoramento, o fascínio, o encanto. Nós queremos isso e nunca é suficiente, bastante, e não o conseguimos controlar. Hölderlin diz que há um Deus que manda em nós, portanto nós também somos expulsos, despojados de nós próprios, passamos a habitar a criatura que é entusiasmante, e não somos nós. A partida que nos prega o sentimento é que quando procuramos analisá-lo, ele não é analisado por ele, mas sim por outro, Na anatomia de um sentimento, nós desventramo-lo, desativamo-lo, desvitalizamo-lo. É muito difícil porque, por um lado, queremos perceber o que é que ele está a sentir, e por outro, para percebê-lo, não podemos estar inteiramente invadidos por ele. Esse paredes-meias entre a inspiração e o resultado da própria inspiração é que é a enorme dificuldade. É aquela coisa do filme Cinema Paraíso: a pessoa está apaixonada por estar apaixonada, não está apaixonada por outro porque ele está apaixonado por si. Platão diz: estar apaixonado não existe, porque eu estou apaixonado por mim, e passa-me despercebido, acho que é por outro, mas não. Ou "I love you", diz Shakespeare, "but I am you."

Há quem se apaixone pela pessoa, mas há mais quem se apaixone por aquilo que a pessoa dá ou representa.

Claro. O Borges diz que na cama estão quatro pessoas: eu, o outro, a ideia que eu faço do outro e a ideia que ele faz de mim. Mas há mais do que quatro pessoas, há uma multidão de gente. Somos uma pessoa do singular e não fazemos a mínima ideia. Voltando atrás: Como é que eu posso acordar um sentimento ou não deixá-lo adormecer? Essa é que é a dificuldade, e é esse o objetivo da Filosofia, porque é o conteúdo da verdade daquilo que nós fazemos. Há um filme em que alguém perde o marido e ele fica enterrado no rio glaciar, e a mulher sabe que, em 30 ou 40 anos, a volta que o rio dá permite-lhe ver o marido congelado, como terá ficado. E vê-o, mas repara num fio/corrente ou numa bracelete que não foi ela que deu. Ela está à espera, uma vida inteira, de alguém por quem está apaixonada, mas a pessoa tinha outra pessoa na sua vida. Nós podemos viver em função de um sentimento, e não da pessoa, ou do conteúdo, desse sentimento. Em causa está perceber a verdade desse sentimento. E também há o contrário: nós não percebermos o que sentimos e depois pode ser tarde demais. E às vezes não ser. Essa auscultação implica que nós não podemos deixar-nos adormecer. Ter essa liberdade para deixar acontecer e, ao mesmo tempo, não ser completamente tomado.

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