O dom da negociação
A eurodeputada Elisa Ferreira foi a protagonista de um acordo histórico para o setor financeiro na União Europeia. Mas o que é que tornou este acordo tão especial e porque é que foi considerado uma vitória no feminino? Perguntámos à deputada.

Nos últimos tempos os assuntos financeiros e económicos são constantes protagonistas da atualidade. Números, percentagens e siglas invadem a vida quotidiana munidos de uma autoridade que traz, quase sempre, más notícias. Por isso é até motivador introduzir este tema para trazer uma boa notícia à escala europeia. No passado mês de março, o Parlamento e o Conselho Europeu chegaram a um acordo histórico que procura equilibrar o sistema financeiro europeu, bem como encontrar uma solução para os problemas com que os bancos se têm deparado. A eurodeputada Elisa Ferreira (Partido Socialista) (http://www.elisaferreira.net/), relatora e líder da negociação num grupo composto por quatro mulheres e um homem, passou por Lisboa e falou com a Máxima.
POLÍTICA NO FEMININO
Elisa Ferreira volta a ser candidata nas próximas eleições europeias de 25 de maio e integra uma lista totalmente paritária. Quando questionada sobre o sistema de quotas e uma presença feminina mais acentuada no próximo Parlamento Europeu, a deputada confessa: “Durante muito tempo fui contra as quotas porque achava que eram uma confirmação de uma espécie de subestatuto das mulheres. Depois acabei por tomar uma posição a favor delas porque percebi que isso era instrumental para chegar a uma fase em que as pessoas são pessoas com as suas competências, independentemente do género. Em muitos Estados-membros essa já é a regra, sobretudo nos nórdicos. Há países até que têm muito mais mulheres do que homens na lista.”
- O que é a União Bancária e porque é que este acordo se tornou histórico?
A União Europeia, no contexto da crise, foi afetada por uma relação muito complicada entre bancos que entraram em desequilíbrio e o único instrumento que foi encontrado para suster esta crise acabou por ser pôr o Estado (isto é, os contribuintes) a salvar a banca. Uma das grandes preocupações que o Parlamento assumiu foi, enquanto colegislador, tentar resolver esse problema. A União Bancária é, para a zona euro, um reforço da supervisão, um policiamento dos bancos, que vai passar a ser feito a nível do Banco Central Europeu e com as mesmas regras para todos os bancos que operam na zona euro. Quando o banco já não é viável, existe um fundo que é alimentado pelos próprios bancos (sendo que os países que trazem mais risco ao sistema pagam mais) e que vai ser utilizado para financiar ou apoiar essa reestruturação que acontece depois de serem imputadas as perdas. E no fim falta uma peça neste processo, que ficará para o próximo mandato, que é uma garantia comum para os depósitos até 100 mil euros.
- Os ministros das Finanças foram os maiores opositores? Porquê?
O Conselho normalmente está reunido ao nível de primeiros-ministros, mas neste caso é ao nível de ministros das Finanças. Como se sabe, neste momento, a Alemanha tem grande peso relativamente a todos os outros e acaba por impor no Conselho agendas com as quais muitos ministros das Finanças têm de estar de acordo pela pressão política dos países dominantes, mas que no fundo são contrárias aos seus próprios interesses. E, portanto, era muito importante para a credibilidade de todo este processo que houvesse uma garantia de que os bancos não iriam ser resolvidos de formas diferentes de acordo com o país onde estavam sediados. Do Conselho vinham propostas que não interessavam nem aos bancos, nem a Portugal e a uma série de outros países e, portanto, a negociação foi duríssima, demorou três meses.
- Porque é dado tanto crédito às mulheres no sucesso deste acordo?
O próprio presidente do Parlamento disse que “se não fossem mulheres, tinham desistido mais cedo”. Na equipa negocial, eu era a responsável pela negociação. Dos diferentes partidos políticos há sempre o que se chama um relator sombra e é, dos vários partidos, a pessoa que acompanha as negociações. Portanto: eu liderava, o PPE tinha uma relatora, a Corien Wortmann-Kool, que é holandesa; os liberais tinham também uma relatora sombra que é a Sylvie Goulard, que é francesa; os conservadores britânicos tinham uma mulher que era a Vicky Ford, inglesa, e o único partido que era representado por um homem era Os Verdes que tinha o Sven Giegold, que é alemão. A equipa tinha quatro mulheres e um homem. Nós jogámos até ao fim, eu defini essa estratégia, as minhas colegas aceitaram e mantiveram-na firme na hipótese de não haver acordo. Desde o princípio que disse que era preferível não ter acordo nenhum a ter um mau acordo. Na última reunião do trílogo estivemos 17 horas em conversações. Acabámos por ter um acordo. Acho que as mulheres são menos ansiosas relativamente a terem sucesso: acabamos por tê-lo pela persistência e pela qualidade da nossa discussão técnica. Mas isso causou surpresa no parlamento todo porque disseram que, se não fossem mulheres, tinham cedido mais cedo porque não aguentavam a parte o bluff até ao fim.
- As mulheres têm a capacidade de se multiplicar em variadas tarefas. Isto pode traduzir-se numa maior capacidade de negociação?
Quando o presidente do Parlamento me cumprimentou, eu disse que nós temos outras fontes de autoestima que não são só os resultados e os sucessos profissionais. Ele riu-se e disse: “És capaz de ter razão.” Temos uma calma e uma capacidade de resistência que se nota na capacidade que adquirimos de resistir a solicitações que a determinada altura parece que nos puxam em todas as direções em simultâneo. Temos as pressões do trabalho, temos alguém que diz “tens de ir buscar a criança à creche”, temos a mulher a dias a ligar porque não sabe o que fazer para o jantar. Habituamo-nos a ganhar uma espécie de resistência a estas tensões que nos puxam em todas as direções. Acho que esses vários tabuleiros onde temos de nos jogar acabam por nos criar um distanciamento em relação aos assuntos em termos emocionais e isso ajuda-nos a ter uma resistência muito maior do que os homens às pressões que são continuadas. Em velocidade de ponta talvez não tenhamos a força que é necessária, mas em todos os processos que exigem o que chamo de resiliência, capacidade de aguentar, acho que somos mais resistentes do que os homens. Isso ajudou neste caso.
- A separação e qualificação de géneros na política ainda é taxativa e assenta em muitos estereótipos? Qual é a sua opinião?
Acho que na parte financeira começa uma grande predominância de mulheres porque é um trabalho muitíssimo detalho que requer muita atenção, onde não há sucessos mediáticos porque todo o trabalho é de construção e requer que a pessoa sobreviva à ausência de sucessos rápidos e mediáticos. Os homens preferem coisas que sejam mais rápidas, menos pormenorizadas e que remunerem politicamente mais cedo, de uma forma mais evidente. Noto isso no trabalho de legislação financeira. Cada dia há mais mulheres a fazerem esse trabalho, que requer muita paciência e esta resiliência de uma pessoa trabalhar, trabalhar e mediaticamente não render. Eu já trabalho há muitos anos e no princípio da minha carreira eu era a única mulher nos concelhos de administração, fui a única mulher no concelho científico da Faculdade de Economia. Havia uma descriminação. No Parlamento Europeu, na generalidade dos casos, não há nenhuma discriminação em função do género, mas quando olho para determinados dossiers percebo que algumas características femininas se ajustam melhor a alguns tipos de trabalho que têm precisamente as características que descrevi.
- Como é que consegue conciliar a vida pessoal com a profissional?
Não é fácil, mas nunca foi. É evidente que tendo neste momento os filhos criados acabo por ter a vida bastante mais facilitada. No fundo, venho a Portugal para estar com o meu marido, com os meus amigos, mas já estou numa fase da vida em que, afetivamente, a família continua a ter o mesmo peso, mas já não requer o envolvimento quotidiano que envolve a vida de uma mulher que tem de ajustar a vida profissional com filhos pequenos. Há um cansaço na vida das mulheres que por vezes não é valorizado, mas que existe. A nova geração já faz uma partilha muito mais natural de dossiês e tarefas, sobretudo em famílias em que as mulheres têm um companheiro, alguém que partilhe. Eu sinto que houve uma evolução muito grande na sociedade portuguesa.
