Foto: @patbarnabe16 de maio de 2024 às 14:30 Patrícia Barnabé
Acabo de chegar do velório do meu amigo Manel. Nunca estamos preparados para perder alguém de quem gostamos muito. Nunca. Mesmo quando somos avisados. Mesmo quando já lá estivemos e sobrevivemos. Temos esta mania parva de achar que os nossos amigos são mais fortes do que os outros todos e que, entre os seus superpoderes, está um certo talento para imortalidade. E se o Manel era maior do que a vida.
A moda que sempre assinou com José Manuel Gonçalves, e tudo começou na loja que abriram juntos no Bairro Alto, em meados dos anos 80, é do sublime, do melhor que já se fez em moda neste país, e o mais próximo que temos da alta-costura. Por isso, vestiram sempre, à medida, as mulheres com mais pinta e os casamentos das elites. E também são deles as fardas mais bonitas da nossa aviação.
Tudo o que o Manel tocava, transformava em beleza. Cultivava o belo nos seus mais ínfimos detalhes, da beleza pura das flores brancas, adorava flores brancas, flores em geral, e pediu para as levarmos na sua despedida. Como adorava a sua camisa branca impecável, que usava sempre e com jeans, botões abertos até ao escândalo, uma corrente maciça a espreitar no seu peito magro e sardento. O Manel era um homem muito elegante e muito sexy, o que é muito melhor do que nascer lindo, tinha rock 'n'roll e era muito alegre. Ele sabia que tinha esse poder natural, masculino, magnético, primitivo, era o homem com mais pinta na moda portuguesa, mulheres e homens o desejaram.
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Uma vez ficámos uns dias no magnífico La Mammounia. Ele foi desfilar à semana da moda de Marraquexe, que aconteceu ao mesmo tempo do conhecido festival de cinema e eu fui em reportagem para a Vogue. Acordávamos naqueles quartos maiores do que a minha casa e tomávamos os pequeno-almoço sempre rodeados de estrelas da grande tela. Com o Manel, a vida era uma festa, tudo era possível. Divertimo-nos tanto juntos naqueles dias, que se notava. O Harvey Keitel já nos cumprimentava, o John Malkovitch acenava por detrás do jornal da manhã, o Gael García Bernal convidou-nos, no bar do hotel, para bebermos um copo algures na cidade, com o Ricardo Scamarzo e o Dominic Cooper. E o Manel, camisa branca e vodka tónico na mão, disse: "Talvez numa outra vez". Numa das noites, desci do meu quarto e mal me recompusera de ter acabado de dividir o elevador com o Matt Dilon, altíssimo, lindo, simpático, e deparo com o Manuel no hall de entrada, no seu perfecto de cabedal encarnado, rodeado de fãs a tirarem-lhe fotografias. Julgavam que ele era uma estrela. Agora cintila lá em cima, com os modernos, o Manuel Reis, o Paulo Macedo, o Mário Matos Ribeiro e o Julião Sarmento, todos abriram a pestana de Lisboa.
Fascinava-o a beleza do detalhe mais ínfimo, num vestido, como na vida. Adorava um plissado, amava a Madame Grès, como a austeridade de Miuccia Prada, descrevia uma textura ou uma cor com as mãos a desenharem no ar o fumo do cigarro. Chegou a desfazer um vestido Dior só para perceber a magia do seu interior. Depois voltou a montá-lo e ninguém percebeu. Adorava a minúcia do atelier, embora não se cansasse de dizer que a genialidade estava toda nas mãos, e na cabeça mirabolante e culta do Zé Manel, José Manuel Gonçalves, companheiro de vida de Manuel Alves, que continua a Alves/Gonçalves, para sorte nossa.
O Manel também adorava beleza das pessoas simples do coração, adorava a lealdade e a retidão das coisas bem feitas. elogiava muito a sua empregada de casa, a Lina, e as suas costureiras. Contava estórias delas, com evidente ternura e agradecimento. Encantava-o a beleza das coisas simples, a comida mais tradicional portuguesa, adorava andar descalço no jardim. Dizia que essa simplicidade lhe vinha de uma infância dura, onde voltava sem drama. Detestava que tivessem pena dele, de dar trabalho, de pesar. Era realista, duro até, às vezes, mas de uma leveza impressionante. Na última vez que estivemos juntos, em finais de janeiro, no atelier, em Campo de Ourique, e fomos lanchar ao café da esquina, tranquilizou-me. E eu, parva, devia ter percebido que era a última vez que o veria quando o céu escuro desabou torrencial.
Um dos seus maiores amores eram as suas cadelas cocker spaniel, primeiro a Teresinha, muito esperta e doce, que o víamos passear no Chiado, quando moraram na casa mais linda de Lisboa que até no closet tinha vista para o Tejo. Uma vez, num Vogue Fashion's Night Out apanhei-os no Largo do Camões e sentámo-nos os três num dos bancos de pedra a dizer tontarias, as pessoas desfilavam nos seus melhores modelos, era a noite da moda. Agora, já velhinhas, as cadelas Lola e Alice andavam sempre atrás dele como sombras, mimadas até ao tutano, e refilavam quando ele passava demasiado tempo sem lhes dar atenção. Faziam tudo dele e do seu bom coração que se escondia por detrás da refilice.
Super generoso, não me deixava pagar nada, os jornalistas são uns pelintras. Em Marrocos levou-me aos melhores restaurantes, mas o que ele gostava mesmo era de comer em casa as comidinhas da Lina, com a mesa posta com toalha e guardanapos de pano, velas e flores frescas, jantávamos os dois e as pequenas, rodeados dos seus livros e das suas fotografias, sempre giro, e da incrível coleção de cerâmica. Mesmo quando estava triste, ou as notícias não eram tão boas, tirava-lhes a gravidade insustentável e distraía-nos com uma música qualquer. Estava sempre a ouvir música e a descobrir canções, fazia playlists. As pessoas não sabem, mas muitas das coleções magníficas dos Manéis, nasceram de canções ou de discos, são sorvedores estetas, sofisticadíssimos. O meu amigo Manel era maior do que a vida. E não só porque fazia dela uma festa e uma celebração, mas porque o seu sentido crítico e exigência e busca do bom e do belo o atiravam para a frente, tinha medo de muito poucas coisas. Esse atrevimento era evidente nele, era um motor de vida, uma recusa da mediocridade que recebemos por defeito.
Hoje estavam lá as suas grandes amigas num canto do jardim do palacete das Amoreiras, onde morava com José Manuel Gonçalves. Amigas de anos a fio, outras que ele chamava às vezes, como eu. O Manel era muito bom amigo e falava dos amigos com amor, orgulho, graça e comoção disfarçada. Umas vezes por ano, lá me raptava para um tasco, para comermos pataniscas ou sardinhas fritas, ele conhecia toda a gente. Ou ir lá a casa, os seus almoços de aniversário eram lindos, lindos. Hoje ele estava na capela do palacete, entre o mar de flores brancas de todas as nações, um encontro simples, amoroso, belo. Como ele imaginou. Era uma delícia, o Manel, vai fazer-me muita falta. Falámos várias vezes em escrever as suas memórias, mas nunca sabemos quando a vida nos apanha numa curva demasiado apertada que sabemos existir, mas não antecipar, porque vivemos assim, como acontece.
Juntos tentávamos perceber a vida, ele gozava muito com ela, num sorriso de pirata, como uma verdade universal que afugenta o politicamente correto. Sempre tivemos um horror à hipocrisia e à sonsice dos cobardes. Não se exerce frontalidade e bom sarcasmo com muitos amigos, é preciso não nos levarmos a sério e sermos mesmo apaixonado pela vida. A maioria dos críticos e dos rabugentos só queriam que a vida fosse mais bela para todos. O Manel era hedonista e provocador e, gostava de repetir, era lascivo. Para ele não havia temas proibidos, estava para lá do preconceito e estava-se nas tintas para os limites. Nós nunca sabemos nada, mas o meu amigo Manel era maior do que a vida, por isso eu acho que ele vai sobreviver à morte.