Nigéria: o outro lado da moeda
Só somos felizes porque já fomos infelizes. Não há volta a dar: sem um lado da moeda não existe o outro. E é a experiência pessoal, e a consciência de que nem todos têm as nossas oportunidades, que nos torna gratos.

E as pessoas gratas não são só mais felizes como se sentem dispostas a lutar pela justiça, por um mundo melhor. E o mundo, ao contrário do que dizem os arautos da desgraça, está cada vez melhor – mas está longe de perfeito. O caso recente das meninas raptadas da escola, na Nigéria, deixou claro tudo isto: que os direitos das mulheres ainda são vergonhosamente atropelados e que não nos conformamos que assim seja. O que nos falta, no entanto, é a persistência nessa revolta, um passar para lá das boas
O mais rico de África com mais pobres do mundo
A Nigéria é o maior país do continente africano em número de habitantes, o sétimo do mundo. A população está perto de 170 milhões de habitantes e a economia é das mais pujantes: desde 1971 que tem lugar à mesa do grupo dos países mais influentes do mundo, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo. O Produto Interno Bruto ultrapassa já os 500 biliões de dólares, o que faz dele o país mais rico de África, à frente da África do Sul. Mas a Nigéria é também o país com a maior percentagem da população a viver em extrema pobreza – dois terços da população vivem com menos de um dólar por dia – e está na cauda do mundo em praticamente todos os indicadores de desenvolvimento. O investimento em Educação tem vindo a aumentar, mas continua a representar uma parcela insignificante da riqueza produzida: pouco mais de 6%, segundo o Banco Mundial, quando a percentagem recomendada pela UNESCO é de 26%. Explica muito, quase tudo, mesmo.
intenções. A campanha do #Bringbackourgirls foi extraordinária e levou os Governos de todo o mundo a agir. Mas já caiu no esquecimento. Segundo o Google Trends, que permite analisar as palavras mais procuradas na Internet, depois de um pico na sexta-feira, dia 9 de maio, o interesse pelo tema rapidamente se evaporou. Mas a Máxima não quer deixar esquecer que quase 300 meninas continuam cativas de um movimento fundamentalista que acredita que ir à escola é pecado. E que condena ao inferno quem lhe desobedece.
Continue a ler e fique a perceber melhor porque é que este drama é apenas a ponta do iceberg. Que a Máxima aposta em investigar, sim, exatamente porque falamos de felicidade.
Aconteceu na noite de 14 para 15 de abril: pelas mãos do grupo radical islâmico Boko Haram, quase três centenas de raparigas foram raptadas de um dormitório no Nordeste da Nigéria. “Raptei as vossas raparigas. Por Alá, vou vendê-las no mercado.” Palavras do líder do grupo radical islâmico num vídeo de quase uma hora divulgado pelos media internacionais. As crianças, levadas da escola, serão tratadas como “escravas”, “vendidas” e “casadas” à força, acrescenta o chefe do grupo que assume como missão impor a lei islâmica na Nigéria, dividida a meio entre muçulmanos e católicos.
O mundo demorou a reagir ao rapto, quase um mês, mas quando os nigerianos desesperados conseguiram que as redes sociais gritassem “#Bring back our girls” (Tragam as nossas meninas de volta), a indignação internacional foi ao rubro. Personalidades de todos os quadrantes juntaram-se ao apelo, desde Michelle Obama a Bono Vox, e do Presidente Obama aos Governos dos mais diversos países ofereceram ajuda e até enviaram tropas. Mas elas não voltaram. Desapareceram há mais de dois meses. Cerca de 300 raparigas que estavam na escola. Das poucas que ainda têm a coragem de o fazer, num país onde 11 milhões de crianças não aprendem a ler e a escrever, a maioria raparigas.
Olhar para o que aconteceu apenas do ponto de vista do fanatismo religioso, apesar de tentador, é pura miopia. A Nigéria tem a maior taxa de desistência da escola do mundo. No Norte do país, onde 76% da população vive em pobreza extrema, com um dólar por dia, o desemprego entre os jovens é alto, e a religião predominante é a muçulmana, apropriada pelos radicais, apenas uma menina em cada três rapazes chega à escola. Quando regressou à democracia em 1999, o país desenhou um plano a 20 anos para que todos completassem, pelo menos, o ensino primário, e a frequência do secundário fosse encorajada. E se é verdade que, a nível nacional, há hoje mais raparigas nos bancos da escola, no Norte a taxa de sucesso escolar, ou seja, a percentagem de meninas que completam o ensino primário não chega a 10%.
Sobretudo para estas raparigas, ir à escola representa o risco crescente de ser raptada, violada, violentada e humilhada. A caminho, ou uma vez lá chegada. Pelos colegas, mas também pelos professores, pela polícia, pelos maridos, pelos homens.
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Uma espiral de pobreza e analfabetismo
Nas ruas, a indignação é crescente. As mais de 100 televisões e rádios da Nigéria têm feito eco dos raptos e exigido ação. “As pessoas estão zangadas, querem que o Governo aja com determinação. Isto está a prejudicar a confiança no Governo. Dizem que já sabem onde elas estão, mas a verdade é que ainda não voltaram para as famílias. Estamos solidários e preocupados”, conta-nos um porta-voz da comunidade islâmica na Nigéria, Yunusa Babando.
O desaparecimento de crianças, sobretudo de raparigas, assim como o homicídio de professoras, não é novo na Nigéria mas, desta vez, felizmente, despertou a atenção do mundo inteiro e colocou os holofotes sobre o Boko Haram, que como o nome indica perseguem aqueles que se atrevem a pôr os pés numa escola cristã mas também muçulmana, sobretudo se forem raparigas que, defendem, não devem sair de casa.
Mas a necessidade de combater um grupo terrorista não pode desviar a atenção daquela que é, essencialmente, uma questão de cultura onde as mulheres valem pouco, apesar de serem mais de 80 milhões, metade da população nigeriana, 25% das mulheres de toda a África subsahariana, num ciclo de pobreza e analfabetismo que se tornam terreno fértil para fanatismos religiosos, para tráfico sexual, compra e venda de mulheres. De que Alá é apenas a fachada conveniente.
Mulheres aceitam ser batidas pelos homens
O Governo britânico divulgou, recentemente, um estudo sobre a igualdade de género da Nigéria, elaborado através da organização UK Aid, e que ajuda a compreender porque é que a tragédia deste rapto é apenas a ponta do iceberg. O pano de fundo é o de um país onde as mulheres não têm direitos e são diariamente violentadas. A educação é apenas um dos que lhe estão vedados. Do somatório destas parcelas resulta uma abertura maior a radicalismos ideológicos, religiosos ou outros.
Olhar os números é doloroso, e custa a acreditar, mas explicam muito. O estudo revela, por exemplo, que a esmagadora maioria das mulheres entre os 15 e os 24 anos considera razoável que o marido lhes bata se queimarem a comida, se saírem de casa sem permissão ou recusarem sexo. Os dados do UK Aid mostram ainda que uma em cada três mulheres entre os 15 e os 25 anos foi vítima de violência.
As diferenças entre o Norte, mais pobre, obscuro, dominado pelos radicais do Islão, e o Sul, com maior predominância católica, são gritantes. Os raptos aconteceram justamente a Norte, onde 66% das mulheres não sabe ler nem escrever uma frase que seja. No Sul do país, este número desce para menos de 10%.
A escolaridade não é um valor, nem parece aos pais acrescentar nada à vida das suas filhas, muito pelo contrário, destinadas a casar antes dos 16 anos. Preferem, por isso, usar a sua mão-de-obra no mercado, debaixo da sua vigilância, preparando-as para obedecer ao marido e ter filhos, que obrigatoriamente terão de conceber no primeiro ano do casamento. A verba do Orçamento de Estado para a educação, apesar da prosperidade económica que conhece, é insignificante, e a frequência da escola é apenas, por lei, “recomendada”, indigna-se David Archer, o responsável pelo programa de Desenvolvimento do Action Aid´s, uma organização que procura implementar o direito à educação no mundo e que conhece de perto a situação da Nigéria. A situação é agravada, indica ainda, pelo facto de muitas escolas não terem professoras do sexo feminino, o que ajudaria as famílias a confiar-lhes com mais facilidade as filhas. Mas não têm porque também elas têm sido mortas e violadas, o que torna cada vez mais difícil recrutar voluntárias nigerianas ou de outras nacionalidades para as escolas do Norte do país. Ainda assim, apesar do número de professoras ter aumentado nos últimos anos, não foi acompanhado de um aumento de meninas nas escolas, pelo que esta, sendo uma questão relevante, não explica tudo.
Há muitas escolas que não conseguem garantir ambiente seguro para as raparigas, vítimas de castigos corporais, bullying e humilhação por vezes pelas próprias instituições, e os peritos internacionais protestam, neste momento, contra o facto do Governo da Nigéria, na sequência do rapto, ter fechado escolas, em lugar de garantir a segurança das alunas. “A mensagem que transmite às famílias é que, de facto, é perigoso ir à escola, e que o Governo é impotente para as defender”, insiste David Archer.
A questão económica joga depois um papel importante. Apesar de o ensino primário ser gratuito, livros, transporte e despesas de educação ficam a cargo das famílias. É frequente a falta de pagamento das propinas ser razão para espancamentos nas escolas.
“Recusamos-nos a segui-los!”
O mais fácil é confundir o radicalismo de um grupo fundamentalista com métodos terroristas como o Boko Haram com a religião Muçulmana. Apesar dos radicais justificarem todos os seus ataques com o desígnio de impor a lei islâmica na Nigéria, é a própria comunidade que rejeita a associação. “A liberdade religiosa está prevista na Constituição e nós queremos ação decisiva sobre o Boko Haram”, diz Yunusa Babando. “Nós não apoiamos estes movimentos! Aliás, morrem mais muçulmanos às mãos destes terroristas do que católicos porque nos recusamos a segui-los.”
A Nigéria está dividida praticamente em partes iguais entre católicos e muçulmanos, e a convivência é pacífica, garante. “Nos serviços públicos, há cristãos e muçulmanos a trabalharem lado a lado. Praticamos todos a nossa religião a céu aberto, e nas mesquitas prega-se contra o Boko Haram.”
Yunusa Babando não se cansa de repetir que as ideias e ações do Boko Haram não podiam estar mais longe do Islão. E estão certamente, mas a verdade é que o terrorismo fanático tem levado a que algumas cidades do Norte se assemelhem a uma Belfast de África, com mercado, escola e espaços de convívio separados. As mortes, os raptos e a violência, que só este ano ceifou a vida a mais de 2.500 pessoas, deixam famílias contra famílias, e o ódio cresce onde antes não existia.
Quando este texto foi escrito, as raparigas raptadas continuavam desaparecidas e, nas redes sociais, já poucos seguravam um cartaz a apelar à sua libertação. Enquanto isso, o Boko Haram voltou a atacar. Já no início de junho matou dezenas de pessoas na região de Borno, no Norte da Nigéria. Incendiaram três aldeias, em mais um ataque, que se tornou praticamente ocorrência diária no país. Cresce o medo nas ruas, há mais raparigas em risco, menos crianças a ousarem ir à escola, onde poderiam receber a educação que lhes daria ferramentas para iniciarem uma nova vida, uma nova Nigéria. Quanto aos Objetivos do Milénio, que previam que em 2015 todas as crianças do mundo, de ambos os sexos, teriam um ciclo completo do ensino básico, estão vergonhosamente em risco. Na Nigéria, as raparigas que o querem cumprir pagam com a vida.
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Nos bastidores do Boko Haram
David Raphael, 35 anos
“Os muçulmanos são serpentes”
“Nasci e cresci em Jos, pensando que os muçulmanos eram meus irmãos. Mas são serpentes.” Sentado numa cadeira de barbeiro, apenas a uns metros da igreja que viu explodir há menos de três anos, David Rapahel, de 35 anos, tem uma dificuldade enorme em fazer-se entender em consequência das lesões que a sua boca sofreu. “Não posso trabalhar muito, nem jogar futebol, nem nada disso, porque os meus intestinos saem”, explica, levantando a sua t-shirt do Chelsea FC para me mostrar como é funda e longa a cicatriz que corre a partir do estômago. Dono de uma pequena loja na área predominantemente cristã de Kabong, na cidade nigeriana de Jos, Raphael é uma das vítimas dos cinco ataques bombistas que aconteceram em simultâneo na véspera de Natal de 2010. Dois deles tinham como alvo a igreja católica do Sagrado Coração de Jesus, onde se assistia à Missa do Galo. A explosão, que causou a morte a pelo menos 32 pessoas, ferindo gravemente pelo menos mais 74, foi reivindicada pelo Boko Haram.
Matteo Fagotto esteve na Nigéria e a sua investigação ajuda a entender o que é o Boko Haram e o seu modo de ação. Neste drama sem fim à vista, nada é simples, mas uma coisa é segura: às mãos da organização terrorista ou das forças militares do Governo nigeriano, as mulheres são alvo de uma violência terrível.
O Boko Haram é uma organização armada islâmica que opera no nordeste da Nigéria, sobretudo nos estados de Borno, Yobo e Adamawa. O nome diz tudo: “A educação do Ocidente é pecado.” Responsável pela morte de milhares de pessoas desde 2010, obrigando a deslocar mais de 250 mil pessoas das suas terras, é uma galáxia de células armadas, ligadas entre si, sob uma liderança obscura com alegadas ligações à al-Qaeda. O seu objetivo principal é derrotar o Governo federal e impor na Nigéria um califado, baseado na interpretação à letra da lei islâmica.
Fundado em 2002, o grupo parecia ter sido derrotado em 2009, quando uma ofensiva militar matou 800 dos seus membros, incluindo o seu líder, Mohammed Yusuf. Mas uma versão mais poderosa e ainda mais fundamentalista do grupo inicial ressurgiu em 2010, agora sobre a liderança de Abubakar Sekau, o antigo vice de Yusuf.
Enquanto os alvos da organização inicial eram, sobretudo, representantes governamentais, polícias e soldados, o “novo” Boko Haram ataca e mata civis. Cristãos e muçulmanos, por igual, levando a cabo assaltos contra igrejas, mesquitas, quartéis militares, esquadras de polícia e escolas. Em agosto de 2011, abriu os telejornais como autor de um ataque com um carro armadilhado à sede das Nações Unidas na capital, Abuja. Mas foi o rapto de mais de 270 raparigas de um colégio interno em Chibok, uma vila no estado de Borno, e a ameaça de as vender como escravas que chocou a Europa e os EUA. A incapacidade das autoridades de as encontrar, mesmo com o auxílio de grandes potências, e os mais recentes ataques e ofensivas mesmo depois da presença dos soldados americanos, tornou ainda mais evidente o seu poder. Poder que resulta, acredita-se, das suas fileiras contarem já com milhares de militantes armados, do financiamento conseguido através de raptos e corrupção, e de treino e fornecimento de armas por movimentos terroristas como a al-Qaeda.
Izam Ishaku, de 53 anos
“A religião na mão de ignorantes é pólvora” “Não temos alunos cristãos desde 2008”, explica com tristeza Maimuna Salihu Ayuba, diretor do liceu público Angwan Rogo, em Jos, a cidade onde o Boko Haram fez mais divisões. A escola foi abandonada pelos cristãos na sequência da crescente escalada de violência. Até as professoras cristãs fugiram da escola e as poucas que foram nomeadas para as substituir não aparecem ao trabalho com medo de serem assassinadas, conta a diretora. O professor Izam Ishaku, de 53 anos, confirma: “A religião na mão de ignorantes é pólvora.”
A luta para debelar o movimento vem, no entanto, de trás. Em maio de 2013, o Presidente Goodluck Jonathan declarou um estado de emergência no Norte, mas as contraofensivas militares lançadas contra o Boko Haram não têm conseguido derrotar a organização. Muito pelo contrário – as Nigerian Joint Security Forces (JSF) têm sido acusadas de abusos contra a população civil, com centenas de mortes indiscriminadas, na sua luta contra o Boko Haram. Aliás, a violência do braço armado do Governo tem alienado muita da simpatia das populações, tornando ainda mais difícil a ofensiva militar.
A violência do Boko Haram tem levado à deterioração grave das relações entre cristãos e muçulmanos. A imposição da Sharia, uma interpretação da lei islâmica extremamente penalizadora para as mulheres, em doze estados do norte da Nigéria desde 1999, tem agravado a ansiedade dos cristãos.
Contudo, embora o grupo armado advogue um fundamentalismo total em relação às mulheres, ao seu papel na sociedade, forma de vestir, ou o direito à educação, aplicando castigos duros contra “crimes” como o adultério, só a partir de 2013 é que as mulheres se tornaram os seus alvos preferenciais. Acredita-se que a viragem aconteceu como resposta à prática do JTF de prender as mulheres dos comandantes do Boko Haram, mas o que é certo é que se tornou cada vez mais frequente: enquanto algumas são raptadas como pura retaliação, outras são forçadas a servir como criadas ou cozinheiras dos membros da organização. Mulheres cristãs capturadas durante os raids do Boko Haram são forçadas a converterem-se ao Islão e a casar com os elementos do grupo, enquanto outras são sistematicamente violadas.
A sociedade nigeriana começa a protestar com vigor contra a violência do Boko Haram, mas não há fim à vista: não só as brigadas se têm provado ineficazes como vários esforços de paz entabulados pelo Governo da Nigéria falharam. O protesto internacional causado pelo rapto das meninas de Chibok irá provavelmente tornar impossível uma solução pacífica para este conflito que arrasta a Nigéria para uma vertigem perigosa de que ninguém pode prever a saída.
