Clara Pinto Correia: “Há a ideia de que as mulheres bonitas são estúpidas e que as de respeito não se preocupam com perfumes”
Morreu hoje Clara Pinto Correia, mas a frase que deixou em 1991 continua a cortar o ar como se tivesse sido dita esta manhã. Trinta e tantos anos depois, a escritora e bióloga permanece um espelho incómodo de tudo o que ainda esperamos - e exigimos - das mulheres. A sua vida, marcada por fulgor intelectual, fecha-se agora, mas a crítica feroz aos preconceitos permanecerá impressa, como nesta entrevista dada a Maria Antónia Palla, antiga chefe de redação da Máxima.
Ela não anda na vida à procura do Santo Graal mas assume como um dever descobrir as zonas mais desconhecidas do afecto, do companheirismo e da amizade que ligam os seres humanos, em especial as mulheres. Clara Pinto Correia tem 30 anos e desde os 20 que escreve e faz escrever sobre ela. “Ponto Pé de Flor”, o seu último livro, fez correr muita tinta, a favor e contra. Escandalizou e entusiasmou. É um livro sobre mulheres. É um livro sobre a busca da felicidade. Um júri constituído por Paula Morão, Madalena Fragoso, António Alçada Baptista, António Mega Ferreira e Pedro Tamen, atribuiu-lhe por unanimidade o Prémio Máxima de Literatura 1990. De Buffalo, nos EUA, onde está a preparar um doutoramento em embriologia, Clara Pinto Correia falou-nos de si e do “Ponto Pé de Flor”.
Máxima — “Ponto Pé de Flor” foi recebido com estranheza, com irritação. A crítica não o tratou bem: porquê? Foi o tema, a maneira como o tratou?
Clara Pinto Correia — O que se passou foi muito interessante e estimulante. As pessoas dividiram-se em dois grupos: o da Carla Ferreira Alves e da Teresa Coelho que detestaram o livro e o da Maria Lucia Lepcki e da Maria João Guarda que gostaram muito. Eu penso que a Maria Lucia foi a única pessoa que leu tudo o que lá está, todos os fios condutores que passam por ali, os nós e os laços a que esses fios estão atados. Mas, por muito que que me possa magoar o mal que dizem, fico contente por ter despertado reacções vivas. Seria triste se não dissesse nada...
Máxima — E as razões dessa irritação, você percebe?
C.P.C. — Estava consciente, desde que pensei em escrever este livro, que iria irritar muita gente. Eu sabia que há um certo número de atitudes, de maneiras de estar na vida, que irritam pessoas que se apoderaram do fazer da opinião portuguesa e que, neste momento, exercem sobre a criatividade dos portugueses um efeito muito pernicioso, quase policial: muitas coisas ricas e interessantes ficam com as pernas cortadas à partida...
A alegria, o amor, a ternura, o ter sentimentos fortes e afirmativos, dizer que se adora, que precisamos dos outros, todo esse barulho que é uma impenitente procura da felicidade, toda a inquietação revela uma galáxia mental e emocional que está na antítese do que essas pessoas elegeram como aceitável e decente e que traduz, afinal, uma visão e perceção da vida que toma o tédio como valor fundamental.
MÁX. — O facto de o livro ser sobre mulheres não agravou esta visão?
C.P.C. — Eu também sabia que escrever um livro sobre mulheres, a sua intimidade, a sua promiscuidade, a sua amizade seria o pior dos sacrilégios. Eu sei que existe uma enorme rejeição do universo feminino, porque todas nós sofremos de um excesso de feminismo e feminização. Compreendo perfeitamente. Mas compreender não quer dizer que o considere uma atitude razoável. O facto de existirem eventuais excessos na insistência da galáxia feminina, do universo da mulher, não se justifica que se caia na atitude oposta, isto é: é a partir de hoje, é proibido falar de mulheres.
Mas, embora eu soubesse que este livro seria sacrílego à luz dos parâmetros estéticos vigentes, as reacções que suscitou apanharam-me de surpresa. Eu devo ter sido das pessoas que nos últimos dez anos mais insistentemente afirmou que não faz sentido falar de discriminação em relação às mulheres: instistir nesta tecla parece-me até contraproducente. É verdade que a minha avó, a minha mãe e as suas amigas, passaram por situações muito desagradáveis. Mas, graças à coragem delas, não parece hoje fazer sentido falar de discriminações das mulheres. E eis que tropeço num caso de evidente discriminação: parece que, pelo facto do livro falar de idas ao cabeleireiro, à depilação, às compras, é considerado superficial.
MÁX. — É o universo quotidiano das mulheres que se rejeita?
C.P.C. — Eu só posso dizer que há grandes livros pejados de sinais do universo masculino… Eu lembro os livros do Hemingway, por exemplo: os seus heróis bebem, vão à tourada, andam à pancada, e nada disso nos aflige. A Teresa Coelho, que se insurge contra as raparigas do meu livro irem à esteticista e às compras, nunca a vi dois dias seguidos com o mesmo fato... O mesmo direi da Clara Ferreira Alves: conheço-a há onze anos e já a vi com quatro cores de cabelo e sete ou oito cortes diferentes... São coisas que não lhe aconteceram quando estava a dormir. Ela preocupou-se com elas e acho bem. Mas quando vêm essas coisas nos livro gritam: é uma infatilidade! É um fenómeno curioso e foi uma revelação: há um preconceito em relação ao universo intimo das mulheres. E há também a ideia de que as mulheres bonitas são estúpidas e que as pessoas sérias, responsáveis e dignas de respeito e de profundos recursos intelectuais, não se preocupam com sabonetes, perfumes, roupa interior... Para mim é muito estranho que depois de 1990 - e de tudo o que se percorreu - as pessoas continuem a usar velhor estereótipos de uma maneira institiva e irracional.
MÁX. — Há quem a considere a “menina mimada” da literatura portuguesa: isso incomoda-a?
C.P.C. — Incomodou-me muito quando percebi, com a minha ingenuidade de 20 anos, que essa atitude existia. Houve uma altura em que andei muito triste com a ideia que algumas pessoas faziam de mim. Depois, fui criando mecanismos de distânciação. É precisoa gente delsigar, sem deixar que nos magoem.
Para uma "menina mimada", não me parece ter uma história muito coerente: eu ganho a vida desde os 19 anos, sempre tomei conta de mim e passo o tempo livre a trabalhar onde muita gente nunca foi. Em colónias de férias com crianças, em Trás-os-Montes e no Alentejo, a trabalhar nas vindimas ou na apanha do tomate. Sou uma "meninna mimada" que se licenciou em biologia enquanto trabalhava a tempo inteiro como jornalista, a dar explicações e a fazer colaborações para tudo o que era sítio, lançando mão de todos esses expedientes de sobrevivência. E será por ser "mimada" que - depois de ter a cama feita em Lisboa - deixei tudo e vim para Buffa-lo, onde cai neve de Outubro a Abril, sozinha, preparar o doutoramento...? Mais uma vez, são os estereótipos a funcionar: se a pessoa é alegre e não esconde a alegria, é leviana, nunca sofreu...
MÁX. - Em «Ponto Pé de Flor» você assume de uma forma quase despudorada a amizade entre mulheres: inspirou-se na sua própria experiência pessoal ou foi o propósito assumido de abordar um tema pouco tratado na nossa literatura?
C.P.C. - Eu quis escrever este livro porque sei que a grande amizade com outra mulher que existe na minha vida - nomeadamente, a minha amizade com a minha amiga Ana, a quem dedico o livro e sem a qual eu não saberia bem como continuaria a viver - existe na vida de quase todas as mulheres. E essa amizade é extremamente importante, embora exista praticamente escon-dida, como se fosse uma coisa feia. Eu queria expô-la aos olhos de toda a gente como uma coisa lindíssima que realmente é.
Para cúmulo, todos nós acabamos por sofrer de uma visão deformada do que é re lação entre mulheres. De acordo com os estereóti-pos, as mulheres estão sempre em competição umas com as outras, movidas pela inveja. Ora, eu acho que existe uma maldade, uma malícia e um cinismo femininos que, do meu ponto de vista, são eficientes e deliciosos e não impõem forçosamente a necessidade de as mulheres estarem sempre a espiar-se e a degladiar-se entre si. Há uma altura, em que uma das personagens fala de outra mulher como «uma grandessíssima asquerosa de pernas horro-sas»: as mulheres sabem exercer como ninguém uma crítica destruidora mas isso não tem nada a ver com qualquer jogo de emulação que a nossa cultura e civilização decretaram ter a ver com as mulheres.
MÁX. - Portanto, neste livro, trata-se só de amizade...?
C.P.C. - O facto das duas mulheres no livro serem muito amigas, precisarem muito uma da outra, não quer dizer que sejam lésbi-cas, se é isso que quer sa-ber. Quando vimos, por exemplo, um filme como «Butch Cassidy and Sundance the Kidd» nunca perguntamos se o Robert Red-ford e o Paul Newman são maricas... É óbvio que eu, como muitas mulheres, também tenho a minha melhor amiga. Mas é um perfeito disparate pretender-se que eu escrevi este livro para contar aos outros a minha vida: é uma das coisas mais tontas e mais cruéis para se minimizar o trabalho de uma escritora.
MÁX. — Aliás, há quem diga também que, embora não existam neste livro personagens masculinos, os homens não deixam de estar presentes. Concorda?
C.P.C. - Naturalmente, porque os homens estão muito presentes na vida das mulheres. Pela conversa e pelo olhar das mulheres perpassa tudo o que é fundamental no mundo delas e os homens fazem parte viva e integrante desse mundo.
Neste livro, não há uma qualquer proposta de mundo em que o homem esteja ausen-te. Há apenas uma proposta de universo feminino que não exclui os homens. O que não faz sentido é a conclusão algo selvagem de que as mulheres não podem viver sem os homens nem eles sem elas. Acho que as mulheres podem viver com os homens, mas acho também que elas - como qualquer homem - devem viver a vida que lhes apetece. Às ve-zes, podem viver com um homem. Outras vezes, sem eles: desde que seja a fórmula em que se sintam bem devem viver como lhes apetecer.
Para a felicidade não há regras, excepto uma: a de procurar não ferir os outros. A procura da paz e do equilíbrio - que é o tema deste livro - é um exercício ao qual, pela natureza da alma humana, é impossível impor regras ou dogmas ou livros de estilo.
MÁX. - O facto de ser católica não prejudica este projecto de vida?
C.P.C. - Não. Mas essa pergunta levanta outra questão: a da bagagem que trazemos connosco e da qual não podemos prescindir sob risco de perdermos a nossa identidade. Acho que todos nós, na procura da fe licidade, carregamos uma herança espiritual e de posicionamento que não podemos renegar. Senão, as coisas perdem sentido. Daí a permanência e a constância do eixo de coordenadas ju-daico-cristás através de toda a estrúturação do livro: a constante oferência aos salmos, e canto gregoriano escolhido como vocalização da espiritualidade de um grupo de mulheres, as conversas sobre o impacto da fé cristã original na organização do nosso pensamento e da nossa ciência actuais e de toda uma certa organização formal dos episódios que vai evoluir do Velho para o Novo Testamento.
MÁX. — A religião tem importância na sua vida?
C.P.C. — Tem o peso que tem para qualquer pessoa que tem uma fé. Não é uma coisa em que esteja sempre a pensar. mas está comigo.
MÁX. - Disse há tempos que reparte a sua vida por dois capítulos: a literatura e a ciência. Mas há mais: o jornalismo, o tea-tro... Como se dá com esses capítulos todos?
C.P.C. - Eu acho, à medida que o tempo passa, que as coisas que fiz têm uma raiz comum: a grande vontade de comunicar, de chegar às outras pessoas, explorando formas para transmitir sentimentos, ideias. Terei tendência, no futuro, a fazer menos coisas de tipo diferente e a centrar a minha comunicação em dois ou três pontos fundamentais que encerrarão todas as fórmulas que explorei para trás.
Neste momento, estou profundamente empenhada em terminar o meu doutora-mento, em prosseguir uma actividade pedagógica e científica que me satisfaça. E, naturalmente, em continuar a escrever bons livros.
MÁX. - As pessoas com múltiplos dotes não são muitas vezes levadas a sério. Sentiu isso alguma vez?
C.P.C. - Sim, sim, toda a minha vida. Eu compreendo que pareça estranho, até por uma questão logística: quando é que ela faz isto?
Mes eu sei também que a criatividade não tem regras, não se lhe pode impor uma disciplina universal. Cada um de nós se exprime à sua maneira e no tempo que para cada um faz sentido.
MÁX. - Desde o seu primeiro livro - um inquérito realizado numa aldeia da Ribatejo - você interessou-se pelo universo feminino. Por ser um universo: pouco conhecido, discriminado?
C.P.C. - O universo feminino, desde que me apercebi da sua existência, sempre me fascinou, sobretudo pela capacidade de humor e subversão das mulheres, da permanente desconstrução do clímax dramático através de um anti-clímax de efeitos eficientes.
Uma das coisas mais bonitas e mais perturbantes que retirei do contacto com as mulheres da aldeia foi a sua capacidade de contar corsas terríveis passadas com elas próprias, de desfiarem crónicas épicas de grandes abnegações, grandes desilusões, grandes pa-decimentos, de uma maneira profundamentei irónica, com um riso latente por baixo da tragédia.
Isso é uma das coisas que admiro nas mulheres: a capacidade de não se levarem a sério e dizerem «amanhã será outro dia»...
MAX. - Você conta pelo prazer de contar ou porque acha que o seu livro vai contribuir para uma maior justiça para as muIheres?
C.P.C. - Não sei se conseguirei contribuir para uma maior justiça, mas para uma maior abertura de horizontes no universo mental cas pessoas. Espero, atraves dos meus livros, dar alguns elementos adicionais que ajudem as pessoas a ver o mundo com mais cores, mais ângulos diferentes. com a enorme complexida de que a vida tem, contribuindo com a minha gota de água para o oceano que um dia há-de varrer os estereótipos da face da Terra Mas sinto também prazer em contar histórias, em es-crever. E depois, tenho também o meu lado missioná-rio, esperando que tenha dado uma contribuição positiva para a qualidade das pessoas. Isto é uma grande imodéstia..
MAX. - Você pertence a uma geração que troçou muito das feministas: mas a liberdade que reivindica, o prazer assumido da relação com outras mulheres, seria possível sem o contributo dessas mulheres ridicularizadas?
C.P.C. - Não. De todo. A enorme liberdade e capacidade de decisão que temos hoje nunca teria sido possível sem a luta abnegada e persistente de gerações de mulheres que viveram antes de nós. As vezes, faço um jogo comigo própria em que procuro imaginar o que teria sido a minha vida, com o feitio que tenho, se tivesse vivido antes da minha mãe nascer... Talvez tivesse acabado por fazer o que fiz, mas depois de uma grande luta, esbarrando com muralhas de estupidez, cegueira e incompreensão. E, muito provavelmente, teria sido uma pessoa muito menos feliz.
MÁX. - É feliz?
C.P.C. - Nunca se é permanentemente feliz. A procura da felicidade é muito armadilhada, cheia de perigos e vãos de escada. Mas acho que - em relação às gerações anteriores - temos agora uma potencialidade muito maior, à partida, de podermos procurar e organizar a nossa felicidade. Naturalmente, esta liberdade tem o seu preço: deixa-nos mais despidas, sozinhas, entregues a nós próprias. Já não temos uma moldura fixa que nos enquadrava e dentro da qual era possível fazer projectos. E isso leva-nos a situações como a que descrevo no li-vro: o que está para trás ruiu e ainda não visualizamos o caminho que nos há-de levar ao fim do túnel.
MAX. - Quando faz uma coisa o que é mais importante: a experiência, em si, ou o que fica da experiência? Acontece-lhe lamentar as opções que tomou?
C.P.C. - Não. Acontece-me, sim, ter pena. Mas, mesmo que não as voltasse a fazer, faziam sentido quando as fiz, à luz da pessoa que eu era e do que eu sabia. Foram pontos importantes de um processo de crescimento.
MÁX. — Fez, por exemplo, um casamento muito tradicional: na igreja da aldeia, com flores, festa. Como concilia esse gosto pelo ritual, pela tradição, com o seu gosto pela aventura, a sua incessante busca da liberdade?
C.P.C. - Acho que não são coisas antagónicas. São os velhos estereótipos que levam as pessoas a julgar que as coisas são preto ou branco. Eu não penso assim. Não vejo o mundo em traços grossos de caricatura ou alíneas de catálogo. Quando me casei, casei porque me quis casar e da maneira como me apeteceu casar. Não tenho preconceito contra o preconceito. É uma atitude que me irrita profundamente e contra a qual estou em batalha. Posso per-dê-la. Mas divirto-me imenso a tentar ganhá-la.
MÁX. — A família teve uma importância grande na sua vida?
C.P.C. — A minha família não só representa um dos pólos de organização da minha vida, como a considero a família ideal. Em relação a ela, sempre me senti uma pessoa privilegiada: cresci numa família bonita e de grande qualidade. Os meus pais preocuparam-se em me dar uma educação, com todos os instrumentos e mecanismos necessários para fazer de nós - eu e as minhas irmãs - pessoas conscientes e informadas sobre o que se passava à nossa volta. Isso ajudou-nos a definir padrões de qualidade elevados. Ensinaram-nos também a estar atentos às outras pessoas e a não esquecermos que não estamos sozinhos no mundo.
MÁX. — Gosta de viver em luta ou busca a paz, a harmonia?
C.P.C. — Eu não ando investida de um espírito de procura do Santo Graal. Mas se há um objectivo na vida, esse objectivo é o de ser feliz. As pessoas com quem mais conto, nesta procura da felicidade, são a minha família e os meus amigos, homens e mulheres, pessoas de ambos os sexos, que são parte integrante da minha vida, sem as quais me seria muito doloroso continuar a seguir caminho. Essas são as pessoas que agregamos à nossa volta à medida que crescemos e em que nos vamos despojando das coisas acessórias para focar com as fundamentais.
MÁX. — Gostou de receber o Prémio Máxima de Literatura?
C.P.C. — Foi extremamente agradável. É bom quando se faz um grande esforço sentirmos que atingimos as pessoas onde queríamos atingi-las. E que aquilo que passou de mim para os outros foi de certo modo importante para eles, como foi importante para mim.